Novo governador do Rio nunca foi à Rocinha e diz que não precisa de a conhecer
Wilson Witzel voltou a reforçar a sua proposta de licença para matar “criminosos” que sejam vistos com armas. Entre outras medidas, quer também fazer ruas na favela da Rocinha e transformá-la num bairro.
O antigo juiz federal e recém-eleito governador do Rio de Janeiro pelo Partido Social Cristão (PSC), Wilson Witzel, disse em entrevista ao diário brasileiro O Globo que pretende “abrir ruas na Rocinha”, de modo a transformar a maior favela da capital em “bairro”. Entre outras medidas, como a redução do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços, Witzel reforçou ainda a política de licença para matar “criminosos” que sejam vistos com “fuzis” e a criação de mais clubes de tiro.
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O antigo juiz federal e recém-eleito governador do Rio de Janeiro pelo Partido Social Cristão (PSC), Wilson Witzel, disse em entrevista ao diário brasileiro O Globo que pretende “abrir ruas na Rocinha”, de modo a transformar a maior favela da capital em “bairro”. Entre outras medidas, como a redução do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços, Witzel reforçou ainda a política de licença para matar “criminosos” que sejam vistos com “fuzis” e a criação de mais clubes de tiro.
Empurrado pela “onda Bolsonaro”, Wilson Witzel fez várias declarações ao jornal O Globo quanto à realização de obras na comunidade da Rocinha, a maior favela do Brasil, onde a violência faz parte do quotidiano dos moradores. Localizada na Zona Sul do Rio de Janeiro, a Rocinha está entre os bairros da Gávea e São Conrado, habitados pelas classes altas, e o bairro do Vidigal, mais pobre.
“Vamos buscar recursos para que as comunidades virem bairros”, disse Witzel, referindo-se à favela.
Para construir ruas na Rocinha, uma região com becos e zonas íngremes, os habitantes terão de ser desalojados, e pode haver desflorestação da mata que rodeia a comunidade, lembra O Globo. O ex-juiz não parece preocupado, afirmando que serão construídos “prédios” de modo a assegurar a habitação dos desalojados.
“Os projectos que queremos são viáveis”, assegura, ainda que os jornalistas reforcem que não existe “área disponível” à volta da Rocinha.
Questionado sobre se já esteve na comunidade, o recém-eleito governador do Rio de Janeiro respondeu que não, mas que já lá passou: “Passei perto da Rocinha, nunca subi. Mas a gente não precisa subir para saber que lá realmente é ruim.”
Perante estas declarações, o candidato a governador do Rio de Janeiro pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL, de esquerda) na primeira volta, Tarcísio Motta, criticou o ex-juiz por não conhecer os problemas da região e ser preconceituoso para com a favela.
“Pelo jeito, o novo governador conhece bem os problemas do estado. O preconceito com a favela é o principal deles. A criminalização desse território, que também é cidade, apenas joga pra debaixo do tapete o que se negocia nas coberturas da Vieira Souto [a avenida mais cara da cidade]”, acusou Motta.
Ordem para matar
Witzel, cuja campanha foi marcada por declarações radicais semelhantes às do Presidente eleito, Jair Bolsonaro, voltou a reforçar a proposta de “abate” de traficantes armados, mesmo sem agressão. Para o governador eleito, a medida controversa “só não desagrada o cidadão de bem”, já que “a polícia tem que ser truculenta com criminoso, se bandido tiver com arma na mão tem que morrer”.
Para evitar comportamentos indevidos, como o caso do homem que foi morto a tiro pela polícia, que confundiu o seu chapéu-de-chuva com uma arma, Witzel garante que vai treinar a polícia através da criação de “células de combate ao crime em cada batalhão”. O seu objectivo é “chegar em 2022 com uma taxa de homicídios por 100 mil habitantes abaixo de dois dígitos e diminuir roubo de cargas, a estabelecimentos comerciais, latrocínios”, disse ao Globo.
Ainda assim, disse que a “polícia precisa investigar mais”, razão pela qual pretende acabar com a Secretaria de Segurança - o órgão responsável por planear e gerir as políticas de segurança pública de cada estado federal -, e acusa a segurança de ser “uma porcaria”.
O ex-juiz defendeu também a criação de “clubes de tiro” para “ajudar a desmistificar a necessidade de ter armas em casa”. Em contexto de assalto, Witzel considera a população apta para avaliar se é necessário reagir ou não: “É como andar de bicicleta”, disse.
Ao jornal O Estado de São Paulo, o governador eleito disse que vai utilizar “um sistema de reconhecimento facial, usar drones, câmaras, e quem estiver de fuzil vai ser identificado e preso”. Segundo o Globo, Witzel e o senador eleito Flávio Bolsonaro (PSL) vão viajar até Israel para “conhecer um modelo de drone equipado com uma arma, capaz de atirar enquanto sobrevoa uma região”.
Mudança na lei e onda de violência
Witzel afirmou que se o “[criminoso] estiver mirando em alguém, tem de receber tiro na cabeça na hora”, colocando em causa a responsabilização da morte, caso não seja em legítima defesa.
“O correcto é matar o bandido que está de fuzil. A polícia vai fazer o correcto: vai mirar na cabecinha e... fogo! Para não ter erro”, acrescentou.
Para Witzel, o Código Penal, que admite que a polícia está isenta de responsabilidade se a morte que provocou em serviço foi um acto em legítima defesa, parece representar uma garantia de que a sua medida é viável. Contudo, o ministro da Segurança Pública, Raul Jungmann, disse na semana passada que a medida dependeria de uma mudança na lei.
“A proposta precisa passar pelo crivo das leis, da legislação e da justiça. Não podemos ter actividades que não sejam dentro das normas, das leis. E hoje ela [a proposta] não está. Precisa de uma modificação legislativa", disse Jungmann.
Para o antropólogo, ex-secretário nacional de Segurança Pública (2003) e ex-coordenador de Segurança do Estado do Rio (2000), Luiz Eduardo Soares, a mensagem da medida de “abate, uma palavra chula e vulgar, que não se usa nem para frangos ou gado”, é clara: “o policial está liberado para matar, porque passa a ser beneficiar com a regra de engajamento típica das Forças Armadas em guerra”, disse ao Jornal do Brasil.
Soares alerta para o facto de que a polícia fluminense é das mais violentas no mundo, sendo que mais de um terço dos homicídios no Rio de Janeiro são cometidos em contexto de operação policial. Segundo um relatório da Defensoria Pública do Rio de Janeiro sobre os militares, as comunidades das favelas denunciam ainda roubos, invasões de casa, agressões físicas e violações sexuais.
“Imaginemos que esse absurdo seja aprovado, contra o que afirma a Constituição, pois não temos pena de morte no Brasil e não há possibilidade de atirar para matar a menos que seja em legítima defesa do próprio policial ou de terceiros. Se o fuzil estiver ao lado de uma pessoa, encostado numa parede ou depositado no chão, isso também será considerado porte e a pessoa será morta? E se uma criança de 10 anos for obrigada por um traficante a levar um fuzil de uma casa para outra, a criança também será 'abatida'? O que o novo governador está propondo é a legitimação das execuções extrajudiciais. A polícia se tornará um gigantesco grupo de extermínio”, acusa.
Também a Amnistia Internacional do Brasil condenou as declarações do governador eleito em comunicado, dizendo que “são uma afronta à legislação brasileira e à legislação internacional e desrespeitam as regras de uso da força e armas de fogo por parte dos agentes da segurança pública”.
“Autorizar previamente a polícia e as forças de segurança a actuarem de forma ilegal, violenta e violando direitos humanos só resultará numa escalada da violência e colocará em risco a vida de centenas de milhares de pessoas, inclusive os próprios agentes da segurança pública”, acrescentou, apelando a acções estratégicas de inteligência, investigação, prevenção, e maior controlo de circulação de armas de fogo.
Para além destas medidas, o governador eleito disse ao Estado de São Paulo que “o principal é gerar emprego, aumentar o PIB da agricultura, a educação, a saúde, diversificar o turismo”. Ao Globo, afirmou que as “medidas do Plano de Recuperação Fiscal estão se mostrando viáveis” e que acredita que até 2022 a região tenha capacidade para pagar a dívida de 8000 milhões de reais (dois mil milhões de euros) aos bancos federais.
Pretende também reduzir, “quem sabe até zerar’’, o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) de sectores como a aviação para criar empregos. Quanto ao combate à corrupção, planeia conceber um programa para a “análise de sinais exteriores de riqueza”.