Transformar o quarto num templo

O ferro de Rui Chafes versus o bronze e o gesso de Alberto Giacometti. Afinal, uma afinidade profunda, intuiu a proposta de uma exposição em Paris.

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Sandra Rocha

Esta exposição partiu de uma intuição curatorial de Helena de Freitas que percebeu existirem profundas afinidades entre as obras dos escultores Alberto Giacometti (1901-1966) e Rui Chafes (n. 1966). E é uma intuição porque não há entre estes dois artistas relações critica e canonicamente estabelecidas. São de mundos geográfica, cronológica e artisticamente distantes e anacrónicos, não frequentaram as mesmas escolas e não partilham quaisquer códigos formais ou materiais: o ferro de Chafes versus o bronze e o gesso de Giacometti; a lisura das superfícicies versus a rugosidade; as abstracções de corpos e lugares versus a tensão permanentemente figurativa do segundo. Uma relação quase de antagonismo que, à primeira vista, poderia colocar estes dois artistas em campos escultóricos opostos.

Mas, como tão bem percebeu Helena de Freitas, a afinidade entre ambos ocorre a um nível mais profundo onde já não se pode falar de forma, figura ou matéria, mas se torna necessário recorrer a um outro tipo de vocabulário que diga o aparecer o mundo e a existência das coisa e fale acerca da imensa comunidade dos mortos a quem toda a obra de arte se destina. Para Chafes, conforme escreveu em 1998 num texto intitulado Talvez, o caminho de Giacometti é um caminho de negação, redução, austeridade, ascetismo o qual resulta, ainda segundo as suas palavras tão precisas, na apresentação de um testemunho do Homem desprovido de qualidade individuais, o Homem tornado local, lugar, espaço. O Homem destruído, esburacado, dissecado, exaurido.

Ideias que não só servem para descrever a obra do escultor suiço, mas caracterizam de um modo profundo a obra dos dois artistas e que levaram a juntar num mesmo tempo, num mesmo espaço e numa mesma experiência ambas as obras. Gris, Vide, Cris [cinza, vazio, gritos] é o título dessa proposta a quatro mãos feita na delegação de Paris da Fundação Calouste Gulbenkian de Paris com o apoio da Fondation Giacometti.

Se a experiência da negação e do vazio é um elemento comum, também existe um modelo de trabalho semelhante a ambos os artistas: o trabalho solitário de Giacometti no estúdio é também a minha forma de trabalhar, afirma distanciando-se das ideias contemporâneas de produção artística e tentando regressar à solidão, à artesania e à manualidade como elementos essenciais na construção da obra de arte.

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Sandra Rocha
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A relação de proximidade proposta por Chafes com os seres esguios e imateriais de Giacometti inscreve-se num dispositivo escultórico que nos permite experimentar directa e proximamente as figuras do artista suíço Sandra Rocha

Para o escultor português a proposta que lhe foi feita, a qual segundo diz nunca pensou poder tornar-se possível, transformou-se na ambição de, sobretudo, dar a ver Giacometti. Para Chafes, tratou-se de, com humildade, mostrar aquelas esculturas nas condições em que nunca foram vistas e tendo o cuidado de não sobrepor os meus trabalhos aos dele. Tratou-se, essencialmente, de uma relação de cuidado.

Daqui resultou uma exposição excepcional e singular onde vemos as obras de Giacometti, feitas maioritariamente nos últimos quinze anos da sua vida, a partir de uma posição pouco usual: livres de plintos, vidros de campânulas, luzes dirigidas, encenações museográficas, livres das vitrines que encadeiam e cegam o espectador e o condenam a uma posição de distância face aos seres que são as obras de arte. E é excepcional também porque a relação de proximidade proposta por Chafes com os seres esguios, fugidios e imateriais de Giacometti se inscreve numa lógica de criação de um dispositivo escultórico que nos permite experimentar directa e proximamente as figuras de Giacometti.

Transformar o espaço

Genet, no livro O estúdio de Alberto Giacometti, relata um diálogo que teve com o escultor enquanto lhe lia passagens do livro que escreveu sobre ele: “É preciso coração forte para ter uma das suas estátuas em casa.

ELE: Por quê? / Hesito em responder. A minha frase vai fazê-lo troçar de mim. EU: Uma de suas estátuas num quarto, e o quarto vira um templo.” E nesta exposição é como se Chafes tivesse percebido que é esta a metamorfose que as obras de arte operam no espaço mundano: transformam o espaço quotidiano e indiferenciado do dia-a-dia num templo. Claro que esta metamorfose espacial tem igualmente consequências no tempo, porque esta operação ocorre num espaço-tempo. Desta forma, é o continuo do espaço e do tempo que se vê perturbado e transformado através da acção da arte.

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Sandra Rocha

Todos os gestos materializados nas esculturas de Chafes são formas de testemunhar esta transformação como quando, por exemplo, cria um corredor de ferro negro com um comprimento de quatro metros para dar a ver uma minúscula cabeça de Giacometti com quatro centímetros (Toute petite figurine, circa 1937-39): um túnel inclinado a provocar o desequilíbrio, a tontura, a náusea. E aqui a escultura de Chafes funciona como activador de um determinado estado disposicional que é condição de acesso à pequena figura imóvel no limiar do túnel. Este não é um jogo inocente ou fortuito, mas faz parte da estratégia de energização com que Rui Chafes entendeu esta colaboração.

Um outro momento é dado por um corredor nas paredes do qual são abertas frinchas como se fossem golpes desferidos na carne de um corpo, mas estes golpes são, na verdade, aberturas para uma sucessão de esculturas de Giacometti. O elemento decisivo é que aqui aquelas esculturas ficam à altura do olhar e próximas do corpo do espectador permitindo uma intimidade e uma concentração da visão pouco comuns nos habituais dispositivos museológicos: neste espaço escuro e com possibilidades limitadas de visão (o espectador não pode circular a volta das obras e tem de permanecer encostado a parede de ferro e espreitar através de pequenas aberturas) o olhar concentra-se e a atenção foca-se. Desta forma, tudo se passa como se a enorme escultura/corredor de Chafes fosse um dispositivo óptico destinado a anular possíveis interferências na visão dos corpos de gesso e bronze de Giacometti.

Se o corredor e este túnel de visão são momentos intensos, outro é quando Chafes interfere directamente na escultura Le Nez (1947-1950). Trata-se de uma escultura deixada incompleta pelo artista e que Chafes foi desafiado pela Fundação Giacometti a completar. A obra é uma versão de uma série normalmente apresentada em gaiolas. Mas Chafes optou, como diz, por criar uma fábula. E é uma fábula porque a escultura de Giacometti surge suspensa no ar, como se subitamente tivesse ficado liberta das leis da gravidade e pudesse levitar sem qualquer apoio ou suporte e, assim, tivesse concretizado o sonho escultórico da leveza. Livre das redomas que isolam, distanciam e tiram as esculturas ao mundo, aqui a posição da escultura é uma posição de fragilidade, perigo e susceptibilidade idêntica à situação a que está sujeito qualquer outro corpo. No extremo dessa escultura que fiz para o Giacometti, sublinha o artista, e à altura do coração está uma seta afiada e potencialmente mortal. Podemos pensar que esta seta apontada ao coração é uma forma de recordar que uma das modalidades da arte tocar a vida é sob a forma do perigo, da ferida, da ameaça.

O que é notável é que apesar desta concentração em Giacometti, em nenhum momento se deixa de reconhecer o trabalho de Chafes, as suas inquietações e o modo como traz para a escultura em ferro um mundo tão singular, vertical, intenso, metafísico e poético.

A noite imemorial

Por aqui se vê estar em causa não uma estratégia expositiva, mas uma estratégia escultórica cujo alcance está na forma como como os dois artistas se prolongam, contaminam e iluminam mutuamente. Porque não é só a escultura de Giacometti que aprendemos e apreendemos melhor, mas as obras de Chafes ganham figuras, texturas e interiores que poderíamos julgar estarem ausentes.

Para Rui Chafes esta exposição não serviu só para revisitar um artista histórico que desde sempre fez parte da sua família artística e intelectual. Este encontro serviu-lhe, como diz, para aprender que as esculturas de Giacometti possuem o interior que tem estado ausente do trabalho que tem desenvolvido: as minhas esculturas, diz, sempre foram uma espécie de pele sob a qual escondia as rugosidades e as diferentes texturas que todos os corpos possuem no seu interior.

Nos seus trabalhos anteriores o ferro negro, polido e uniforme escondia todas as marcas da mão humana e evitavam qualquer reenvio ao génio artístico como forma de practicar o combate ao ego que o poeta Gotfried Benn, que Chafes tanto aprecia, dizia ser o mal no sistema de valores da arte. Agora o caminho é em direcção ao encontro da fragilidade do corpo abrindo-o e expondo-o: Avec Rien (2018), que o artista fez para esta exposição, são esses corpos que, lenta e suavemente, começam a expor o que existe para lá das superfícies uniformes expondo as rugosidades e o modo como o tempo se inscreve na superfície da pele.

Se as colaborações de Chafes com outros artistas são conhecidas (Pedro Costa, Orla Barry, Vera Mantero, entre outros), há aqui pela primeira vez há um diálogo com um artista morto. Todas as questões da discussão e da confiança artística ficam impossibilitadas e só a intuição e instinto artísticos podem conduzir o artista. Mas esta relação com os mortos é, segundo Chafes, fundadora de todo o fazer artístico, porque todo o artista, toda a obra, ensina-nos Jean Genet, deve, com uma paciência e uma aplicação infinitas desde os momentos da sua elaboração, descer aos milénios, juntar-se, se possível, à noite imemorial povoada de mortos que irão reconhecer-se nessa obra (O estúdio de Alberto Giacometti).

O Ípsilon viajou a convite da Fundação Calouste Gulbenkian