Fogaça, a biografia que fazia falta

Foi líder do PCP por duas vezes ao longo de duas décadas. Em 1960, é preso pela PIDE, pela terceira vez, acompanhado pelo seu companheiro. Fogaça foi ignorado pela história oficial do PCP, numa atitude de ostracismo em que se mistura o estigma da homossexualidade e o facto de ter sido o principal rival de Cunhal.

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Júlio de Melo Fogaça é ainda hoje um nome quase desconhecido em Portugal. A biografia agora lançada por Adelino Cunha ajuda a resgatá-lo do esquecimento a que foi remetido até pelo facto de ter sido apagado da história pelo PCP, partido de que foi líder durante períodos diferentes e sempre em confronto estratégico com as orientações defendidas por Álvaro Cunhal.

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Júlio de Melo Fogaça é ainda hoje um nome quase desconhecido em Portugal. A biografia agora lançada por Adelino Cunha ajuda a resgatá-lo do esquecimento a que foi remetido até pelo facto de ter sido apagado da história pelo PCP, partido de que foi líder durante períodos diferentes e sempre em confronto estratégico com as orientações defendidas por Álvaro Cunhal.

Em Júlio de Melo Fogaça, Adelino Cunha explica o que é possível recuperar da vida e do papel político do homem nascido na Quinta do Porto Nogueira, no Cadaval, no seio de uma família fidalga, em 10 de Agosto de1907, que adere ao PCP por volta de 1932-1933. Foi um dos principais intelectuais e ideólogos deste partido nos anos quarenta e cinquenta do século passado. Mas faleceu num limbo de ostracismo político-partidário em 28 de Janeiro de1980, apesar de ter sido o presidente da Comissão Administrativa da Câmara do seu Cadaval entre 1974 e as primeiras eleições autárquicas de 1976.

Depois de ter lançado A Ascensão ao Poder de Cavaco Silva (2005), Álvaro Cunhal Biografia (2010), António Guterres: Os Segredos do Poder (2013) e Os Filhos da Clandestinidade (2016), Adelino Cunha reconstrói a teia de relações, posições políticas e ideológicas de Fogaça, recorrendo a um conjunto diverso de fontes que vão desde o arquivo pessoal de Fogaça, depositado na Academia das Ciências, aos arquivos de tribunais e da PIDE, passando por jornais e livros de história e de memórias e ainda relevantes depoimentos exclusivos de Edmundo Pedro, Carlos Brito e Domingos Abrantes. Este último dirigente histórico de relevo no PCP e seu representante no Conselho de Estado quebra o silêncio oficial do partido sobre Fogaça.

Sobre o filho de José Maria das Neves Fogaça e de Maria José de Melo, a biografia revela a relação profunda que manteve com a sua irmã mais velha Beatriz e com a sua mãe, que foram o lastro afectivo em que assentou o seu percurso político. Mas o que valoriza o livro de Adelino Cunha é, sobretudo, a abordagem que faz da vida e do pensamento político deste líder do PCP.

Estrear o Tarrafal

Tendo sofrido um total de 19 anos de passagem pelas prisões políticas do Estado Novo, Fogaça é preso a primeira vez em 1935, em conjunto com o então secretário-geral do PCP, Bento Gonçalves, e o terceiro membro do secretariado, José de Sousa. É enviado para a o forte-prisão de São João Baptista, em Angra do Heroísmo e, em 1936, é um dos presos políticos que estreiam o Campo Prisional do Tarrafal. Libertado em 1940, devido à Amnistia dos Centenários (1140 e 1640), é de novo preso em 1942 e enviado mais uma vez para o Tarrafal, sendo libertado em 1945. A sua terceira prisão ocorre em 28 de Agosto 1960, ficando preso em Caxias e Peniche até 1970.

É precisamente a sua terceira prisão que ainda hoje é polémica, como Adelino Cunha demonstra. Isto porque Fogaça foi detido pela PIDE, nas ruas da Nazaré, acompanhado pelo seu companheiro Américo Gonçalves, com quem mantinha, há três anos, uma relação amorosa. É “condenado em 27 de Maio de 1961 pelo Tribunal Criminal de Lisboa a oito anos e meio de prisão maior e fixa, a suspensão de direitos políticos por 15 anos e sujeito a medidas de segurança renováveis até três anos.”

À pena política soma-se, em julgamento separado, uma pena por ser homossexual. “Houve uma segunda penalização oculta. Um julgamento consagrado no dia 6 de Abril de 1962 pelo Tribunal de Execução de Penas de Lisboa e dissimulado no processo político (...) foi aqui condenado como ‘pederasta passivo e habitual na prática de vícios contra a natureza’, tendo ficado sujeito durante cinco anos ‘à regeneradora medida de segurança da liberdade vigiada, com início na data da soltura’.”

No livro, Adelino Cunha faz perguntas e lança pistas sobre as circunstâncias da detenção, mais concretamente sobre como a PIDE montou e levou a cabo uma ampla operação em Lisboa e na Nazaré que conduziu à prisão de Fogaça. E entre as perguntas que coloca está a hipótese de ele ter sido vítima de delação por parte de camaradas de partido. Uma dúvida que perdura há décadas e ainda hoje permanece sem resposta. Até porque, como Adelino Cunha desenvolve, a sua presença na Nazaré “era do conhecimento de várias pessoas”.

Na sequência desta prisão, Fogaça é suspenso do PCP e posteriormente expulso, sob acusação de pôr em risco a organização clandestina do partido. E, quando a 4 de Dezembro de 1961, fogem de Caxias, no Chrysler de Salazar, José Magro, Francisco Miguel, Domingos Abrantes, António Gervásio, Guilherme de Carvalho, Ilídio Esteves, Rolando Verdial e António Tereso, Fogaça é deixado para trás, quando um ano antes era o principal membro do secretariado do PCP e o seu líder na prática. É, aliás, transferido para o forte-prisão de Peniche, em castigo pela fuga efectuada pelos seus camaradas.

“A importância da homossexualidade no processo de expulsão de Júlio Fogaça tornou-se relevante na exacta medida em que o seu papel político se transformou em apostasia”, afirma Adelino Cunha, que considera, porém, que “a suspensão, a expulsão e o apagamento de Júlio Fogaça pelo PCP na sua história estarão mais baseados na inflexões estratégicas que implementou no PCP e na disputa política com Álvaro Cunhal e menos nas opções sexuais.” O autor defende mesmo que “foi o abandono na prisão de Caxias na fuga colectiva de 1961, a falta de transparência em todo o processo e expulsão e a progressiva desmemorização da sua história do PCP que criaram a percepção de que a decisão política se fundamentou no preconceito e na intolerância.”

Afrontar Cunhal

De facto, o pecado maior cometido por Fogaça foi ter ombreado com Cunhal na disputa pelo poder e pela liderança do PCP, defendendo uma linha política e uma estratégia de alianças diferente. Ambos são da mesma geração – Cunhal tinha menos seis anos de idade -, e chegam ao PCP no mesmo movimento de adesão aos ideias da revolução russa de 1917.

“Tornaram-se discípulos de Bento Gonçalves, partilharam o poder e passaram a disputá-lo após a morte prematura do mestre” falecido no Tarrafal em 1942. “É a ligação a Bento Gonçalves que o projecta na ascensão partidária, aliás, é o secretário-geral que o indigita para liderar a Reorganização do PCP entre 1940-41”, quando Fogaça é libertado do Tarrafal em 1940. O movimento de reconstrução e redefinição política do PCP em linha com o Partido Comunista da União Soviética (PCUS) é assim liderada por Fogaça, contra o secretariado à época, formado por Vasco de Carvalho, Cansado Gonçalves e Francisco Sacavém.

É Fogaça que “apadrinha” a ascensão de Cunhal, a quem encarrega de reorganizar a Federação das Juventudes Comunistas Portuguesas, que tinha sido criada por José de Sousa. Fogaça assume-se desde então “como um dos principais intelectuais da década seguinte e acabou por chegar à liderança”, o que acontecerá após a última das três prisões de Álvaro Cunhal em 1949, impondo então “uma estratégia de tomada do poder baseada numa dinâmica de transição democrática”.

Uma linha estratégica que Cunhal classificou de “saída doce”, já que “implicava abandonar a violência revolucionária”, inscrita na sua defesa da “insurreição popular armada”. E foi logo em 1942, após a segunda detenção de Fogaça, que Cunhal iniciou o seu combate pela liderança: “Álvaro Cunhal aproveitou o que Júlio Fogaça conseguira construir com a Reorganização e iniciou o seu próprio longo e profundo processo de reconfiguração do PCP, marcado por uma clarificação estratégica: lutar pela tomada do poder através de um Levantamento Nacional.” Uma orientação que “seria desenvolvida ao longo das décadas seguintes e assumida pelo PCP até 1974, mas com um período de excepção: os anos em que Júlio Fogaça esteve em liberdade e com liberdade para impor um caminho estratégico diferente.”

Com Fogaça no Tarrafal pela segunda vez, Cunhal predomina e vence o III Congresso do PCP, o primeiro na clandestinidade, em Novembro de 1943. “No Tarrafal, Fogaça lidera após a morte de Bento Gonçalves a Organização Comunista Prisional do Tarrafal [OCPT] e defende a Política de Transição Pacífica que vem na sequência da Política Nova teorizada por Bento Gonçalves logo em 1939”, conta Adelino Cunha, destacando que “Júlio Fogaça sabia que esta legitimação da Política de Transição Pacífica pela OCPT elevava o nível de conflitualidade com Álvaro Cunhal e isso ficou ainda mais claro quando enviou a proposta para o interior”, em 1944, colocando-a à discussão formal no Comité Central. “O embate ideológico arrastou-se por 1945, o que significa que a Política de Transição Pacífica ainda foi sobrevivendo até ao fatal Congresso de 1946 (II congresso ilegal) dentro do PCP”, frisa Adelino Cunha.

Fogaça é derrotado neste IV Congresso e obrigado a sucessivas autocríticas. O caminho para a sua nova ascensão surge após a prisão de Cunhal no Luso, em 1949, em conjunto com Sofia Ferreira e Militão Ribeiro. Afirmando-se progressivamente como doutrinador, após o XX congresso do PCUS, em 1956, Fogaça tem o respaldo do Movimento Comunista Internacional e da teoria da Coexistência Pacífica, então aprovada em Moscovo, para conseguir que as suas teses determinem a orientação estratégica do PCP. Introduz uma linha de unidade antifascista, em que os comunistas se secundarizavam na luta unitária da oposição. É a hora de recuperar a Política de Transição Pacífica, agora chamando-lhe Solução Democrática e Pacífica.

É essa a linha política com que Fogaça sai vencedor do V Congresso do PCP, em 1957, e que influencia a acção do PCP, por exemplo, no movimento unitário em torno da candidatura de Humberto Delgado a Presidente da República. “Domingos Abrantes começa por identificar Júlio Fogaça como ‘o grande teórico deste período’, ou seja da década de 50 e da nova dinâmica gerada pela Coexistência Pacífica”, salienta Adelino Cunha, explicando que Fogaça esmaga então as críticas internas com os mesmo métodos de depuração de que fora e será vítima.

Só que a 3 de Janeiro de 1960, Cunhal foge de Peniche. Os dois líderes coexistem em liberdade alguns meses, até Fogaça ser preso em Agosto de 1960 na Nazaré e cair em desgraça no PCP. Já eleito secretário-geral em Março de 1961, Cunhal encarregar-se-á de condenará a orientação política imprimida ao PCP por Fogaça na década anterior, classificando-a de desvio anarco-liberal.