1383: o ano de todos os perigos
Em Janeiro de 1383, um D. Fernando enfraquecido doava ao irmão de Leonor Teles, João Afonso Telo, a mais importante alcaidaria do país, a do castelo de Lisboa. Quando morresse, a mulher ficaria como regente e o irmão como senhor militar da capital, cujo destino condicionava o de todo o reino...
Em Janeiro de 1383, Portugal é um barril de pólvora pronto para explodir à mais pequena faísca. D. Fernando está doente (envenenado?, pergunta uma biografia recente), ‘perdeu’ a esposa, cuja ligação com o fidalgo galego João Fernandes Andeiro é pública e, pior do que isso, perdeu há muito o seu povo. O reinado deste monarca atraente e carismático até começara bem: sucedendo em 1367 a seu pai, D. Pedro, teria recebido dele um país em excelente condição financeira, com um tesouro impressionante e um reino em paz com Castela. A nobreza desde há muito que se mostrava dividida. Algumas das linhagens mais antigas estavam extintas, outras, tentando resistir ao precoce e quase ininterrupto esforço de centralização régia, tinham-se aliado ao Infante D. Afonso na sua luta contra o pai, D. Dinis. Mas nas últimas décadas do século XIV o problema era outro: devido à guerra civil que dilacerou Castela, opondo Pedro I ao seu meio-irmão Henrique de Trastâmara, na corte portuguesa acotovelavam-se fidalgos castelhanos exilados, ironicamente dos dois partidos que se impuseram à vez.
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Em Janeiro de 1383, Portugal é um barril de pólvora pronto para explodir à mais pequena faísca. D. Fernando está doente (envenenado?, pergunta uma biografia recente), ‘perdeu’ a esposa, cuja ligação com o fidalgo galego João Fernandes Andeiro é pública e, pior do que isso, perdeu há muito o seu povo. O reinado deste monarca atraente e carismático até começara bem: sucedendo em 1367 a seu pai, D. Pedro, teria recebido dele um país em excelente condição financeira, com um tesouro impressionante e um reino em paz com Castela. A nobreza desde há muito que se mostrava dividida. Algumas das linhagens mais antigas estavam extintas, outras, tentando resistir ao precoce e quase ininterrupto esforço de centralização régia, tinham-se aliado ao Infante D. Afonso na sua luta contra o pai, D. Dinis. Mas nas últimas décadas do século XIV o problema era outro: devido à guerra civil que dilacerou Castela, opondo Pedro I ao seu meio-irmão Henrique de Trastâmara, na corte portuguesa acotovelavam-se fidalgos castelhanos exilados, ironicamente dos dois partidos que se impuseram à vez.
Chegou-se a esta situação extrema: no reinado de D. Fernando, todos os títulos portugueses (na altura, apenas existia o título de “conde”) estavam nas mãos de castelhanos (Andeiro, por exemplo, era o Conde de Ourém; os Teles de Meneses e os Castros dominavam os restantes). D. Fernando teve casamento apalavrado e contratado com várias famílias importantes da Europa. Desrespeitou-os a todos para – crime dos crimes – ‘roubar’ a um fidalgo seu vassalo a mulher legítima, Leonor Teles, casando com ela clandestinamente, ‘a furto’, como se dizia, no mosteiro de Leça do Bailio, o que provocou a segunda grande revolta popular.
A primeira ocorrera alguns anos antes, quando mesteirais de várias cidades se levantaram em armas, reivindicando maior intervenção política nos governos urbanos. Essas revoltas foram brutalmente reprimidas, os dirigentes mortos e as famílias infamadas e condenadas à miséria. Seguiram-se três guerras com a vizinha Castela, porque D. Fernando, pressionado pelos seus cortesãos exilados, julgava-se (com algum fundamento) com direito ao trono daquele reino: três guerras, três desastres, dos quais o país saiu exangue, com muitas zonas destruídas, uma inflação assustadora e o povo sujeito a provações atrozes.
Conhecemos a sequência. Em Abril de 1383, Fernando assinará com Juan I de Castela, que acabara de enviuvar, o estranho Tratado de Salvaterra de Magos, que incluía o casamento da sua única filha, a pequena Beatriz, com o rei de Castela (creio que esse tratado tem sido quase sempre mal interpretado). Beatriz que, tal como o pai, estivera prometida a uma mão cheia de príncipes estrangeiros, para acabar, aparentemente, a ‘dormir com o inimigo’.
A faísca foi a morte de Fernando, em Outubro de 1383. E a explosão começou em Lisboa e nas terras mais próximas, com dois momentos-chave: a recusa do povo e de alguns fidalgos em aceitar Beatriz como rainha de Portugal, com muitas vozes a manifestarem o seu apoio ao Infante D. João, filho de D. Pedro e de Inês de Castro, que se exilara em Castela e que o rei Juan I mandara prudentemente prender, para afastar um eventual concorrente ao trono de Portugal; o pequeno golpe palaciano, gizado pelo Conde de Barcelos, João Afonso Telo, irmão de Leonor, e por um veterano servidor de D. Fernando, Álvaro Pais.
Alguém devia entrar no palácio régio e matar o amante da rainha, o Conde Andeiro, libertando Leonor Teles da sua pérfida influência. Para isso os dois homens escolheram D. João, Mestre de Avis, meio-irmão de D. Fernando porque filho ilegítimo de D. Pedro. Era provável que o Mestre morresse na aventura; um dano colateral perfeitamente aceitável. Não morreu e, pelo contrário, saiu em triunfo pelas ruas da capital. Nascia mais um candidato ao trono, apesar do escárnio de João Afonso Telo, que se ria desse ‘pretendente’ apoiado por “dois sapateiros e dois alfaiates”.
Mas voltemos a Janeiro de 1383: um D. Fernando enfraquecido doava ao irmão de Leonor Teles, João Afonso Telo, a mais importante alcaidaria do país, a do castelo de Lisboa. Quando morresse, a mulher ficaria como regente e o irmão como senhor militar da capital, cujo destino condicionava o de todo o reino.
No documento recentemente vindo a público, o Conde de Barcelos, perante um tabelião público da cidade, faz copiar a doação de D. Fernando e confia o castelo de Lisboa, cuja alcaidaria acaba de receber, a Martim Afonso Valente, que o terá em nome do conde.
Julgo que este documento fulcral era desconhecido; não conheço referências a ele nos trabalhos clássicos sobre a época e o tema; não o encontrei numa rápida consulta à Chancelaria de D. Fernando; não sei se o Marquês de Abrantes o terá indicado em algum dos seus trabalhos monográficos. Diria que não.
Para a História: João Afonso Telo combateu em Aljubarrota do lado de Juan I, morreu na batalha e foi sepultado no próprio campo; Martim Afonso Valente acabou por entregar o castelo de Lisboa ao Mestre de Avis e passou-se para o partido dele.