Torre do Tombo vai comprar pergaminho do século XIV no OLX
Documento, que se encontrava à venda na Internet, regista a escritura da entrega do Castelo de Lisboa ao conde de Barcelos em Janeiro de 1383.
Já sabemos que, hoje em dia, na Internet encontramos de tudo: viagens e alojamentos, instrumentos de bricolage e peças para automóveis, selos e discos, brinquedos e refeições embaladas, armas brancas e pistolas de montar em casa… Mas um pergaminho do século XIV com a escritura da entrega do Castelo de Lisboa ao Conde de Barcelos, digamos que não será uma coisa trivial.
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Já sabemos que, hoje em dia, na Internet encontramos de tudo: viagens e alojamentos, instrumentos de bricolage e peças para automóveis, selos e discos, brinquedos e refeições embaladas, armas brancas e pistolas de montar em casa… Mas um pergaminho do século XIV com a escritura da entrega do Castelo de Lisboa ao Conde de Barcelos, digamos que não será uma coisa trivial.
Aconteceu isso nos últimos dias, quando no site de vendas online OLX, ao lado de várias raridades literárias e bibliográficas, Luís Sampaio anunciou a venda de um documento com a seguinte descrição: “Escritura de entrega do Castelo de Lisboa que fez o Alcaide do mesmo, Martim Afonso Valente, ao Conde de Barcelos, Dom João Afonso Telo, o qual prestou ‘preito e menagem’ ao primeiro, de acordo com o determinado pelo rei Dom Fernando, pela carta de 16 de Janeiro de 1383, tresladada nesta escritura. Entre as testemunhas do acto esteve presente o Alcaide do Castelo de Faria, Diogo Gonçalves. Tabelião: Peres Esteves. 1383, Janeiro 26, Castelo de Lisboa”. O vendedor acrescentava que o custo era de 750 euros, e que a entrega poderia ser feita “em mão, na zona de Gaia”, ou via CTT.
O anúncio inédito não passou despercebido ao autor do blogue Repensando a Idade Média, que alertou a Câmara Municipal de Lisboa, e também o PÚBLICO, para a situação. Mas também não escapou à atenção do Arquivo Nacional Torre do Tombo (ANTT), que já decidiu adquirir o documento.
“Vamos exercer o direito de opção na aquisição do pergaminho, e já comunicámos isso ao vendedor”, disse ao PÚBLICO, esta quarta-feira, o director-geral do ANTT, Silvestre Lacerda.
Ao abrigo do Decreto-Lei n.º 16/93, e depois de analisado o teor do documentado publicitado no OLX, a instituição confirmou a sua autenticidade e achou que “faz todo o sentido integrá-lo no património arquivístico nacional”, acrescentou Lacerda.
Contactada igualmente pelo PÚBLICO, a Câmara Municipal de Lisboa, através do seu departamento de comunicação, disse ter tomado conhecimento da situação e, “apesar de o documento estar à venda na Internet e não nos canais habituais de comercialização deste tipo de fontes, está a fazer as démarches necessárias para aferir a sua autenticidade”.
Silvestre Lacerda explicou entretanto que a decisão do ANTT foi tomada sem nenhum contacto prévio com a autarquia que gere o Castelo de São Jorge. “Considerámos que era mais ágil avançarmos nós próprios, para evitar a burocracia que certamente iria fazer arrastar o processo”, adiantou o director-geral, acrescentando que o pergaminho “irá ser incorporado nos arquivos nacionais”.
Autenticidade verificada
Ao PÚBLICO, tanto os historiadores Luís Miguel Duarte e Bernardo Vasconcelos e Sousa, como José Luís Fernandes, autor do blogue Repensando a Idade Média, afirmaram a convicção de se estar perante um pergaminho autêntico.
Bernardo Vasconcelos e Sousa, que foi já também director da Torre do Tombo, e ressalvando estar a pronunciar-se apenas a partir da informação prestada no OLX, diz que “tudo leva a crer que se trate de um documento autêntico, até pela assinatura do tabelião”, e nota que “Dom Afonso Telo era uma figura da alta nobreza da corte de D. Fernando” – rei que iria morrer em Outubro desse ano, dando origem à crise de 1383-85.
Não querendo pronunciar-se sobre o preço pedido, este historiador vê com agrado a decisão do ANTT de adquirir o documento, que “tem principalmente um valor documental”. Vasconcelos e Sousa acha que ele “não trará informação que não exista já do ponto de vista da história”, considerando que o seu conteúdo “estará seguramente registado na chancelaria de D. Fernando”, mas, tratando-se de um documento original, irá permitir o cotejo com esse registo.
Também convencido da autenticidade do pergaminho – “apesar de se encontrar um bocado em mau estado e de ser difícil ler as datas nas dobras”, nota –, Luís Miguel Duarte sintetiza assim a sua contextualização histórica: “Num certo dia de Janeiro de 1383 (o rei D. Fernando está nas últimas, morrerá em Outubro, mas já está muito doente), perante um tabelião público de Lisboa aparece o conde de Barcelos, João Afonso Telo, irmão de Leonor Teles, e mostra uma carta do rei D. Fernando na qual o rei lhe doava a alcaidaria (leia-se, o comando militar e uma série de multas a ele associadas) do Castelo de Lisboa. Naturalmente, o conde tem mais que fazer, pelo que põe em seu lugar, como alcaide ‘substituto’, Martim Afonso Valente”.
Raridade no OLX
Ainda sobre a relevância histórica do presente documento, Vasconcelos e Sousa nota que a história do Castelo de Lisboa, cuja origem remonta ao século XI, está bem documentada praticamente desde a sua fundação, nomeadamente logo através da “descrição que dele é feita numa carta de um dos cruzados que acompanhou D. Afonso Henriques na conquista de Lisboa”, em Outubro de 1147, além de outros testemunhos da época.
A raridade maior deste caso parece ser, então, “o pergaminho ter aparecido no OLX, quando o que é normal é estes documentos surgirem em alfarrabistas e em leilões de bibliotecas antigas”, diz ao PÚBLICO José Luís Fernandes.
Este historiador amador, especialmente interessado pela Antiguidade e pela Idade Média, admite que o pergaminho possa provir do arquivo da Casa de Abrantes, “mas não se sabe por ponde passou”.
O PÚBLICO não conseguiu chegar ao contacto com o vendedor do documento. E Silvestre Lacerda também não tem ainda informação sobre a sua origem, mas lembra que o espólio da Casa de Abrantes foi dispersado na sequência de uma herança e, desde o século XX, tem vindo a ser vendido em lotes em ocasiões diversas – e vários desses lotes estão já incorporados na Torre do Tombo. O director-geral nota, de resto, que o ANTT tem “um gabinete de salvaguarda do património, que regularmente monitoriza vários sites e publicações de alfarrabistas para saber o que vai aparecendo no mercado”, e que foi assim que teve conhecimento do pergaminho do Castelo de Lisboa. Lacerda nota, de resto, que o ANTT adquiriu recentemente, junto de um privado, um documento relacionado com a assinatura do Tratado de Alcáçovas.
Sobre a maior ou menor raridade destas “descobertas” relativas à história mais antiga de Portugal, Luís Miguel Duarte cita outro caso: a venda em leilão, há cerca de dois anos, no Porto, de um pergaminho de D. João I, cujo custo foi de tal modo alto que nenhuma instituição pública conseguiu igualar. Mas um acordo entre o comprador privado e a Faculdade de Letras da Universidade do Porto permitiu a esta a transcrição e publicação do documento, ficando assim salvaguardados o seu registo e divulgação.
“Mas, à excepção da Torre do Tombo, nem sempre as instituições públicas estão atentas a este mercado”, lamenta José Luís Fernandes. E mesmo quando estão, “muitas vezes não têm dinheiro, porque na Cultura nunca há dinheiro para nada”, acrescenta o blogger de Repensando a Idade Média.
Além de que este é um mercado muito volúvel, e sempre sujeito a variáveis dificilmente identificáveis. “Há hoje uma ideia, perversa, de que quem tem em casa um documento desses tem um tesouro. Pode sê-lo do ponto de vista patrimonial, mas não necessariamente monetário”, alerta Bernardo Vasconcelos e Sousa.
De Moura a Alcáçovas e a Tordesilhas
O ANTT fez há poucos meses a aquisição, junto de um alfarrabista transmontano, de um outro documento relevante da história de Portugal, datado de 1479. Trata-se do registo do “treslado das Tercerías de Moura”, que diz respeito ao acordo celebrado nesta localidade alentejana a propor “o casamento da infanta D. Joana, ‘a Beltraneja’ (1462-1530), filha de Henrique IV e D. Joana de Portugal, com o príncipe D. João, filho dos Reis Católicos, herdeiro da coroa de Castela e Aragão, feito na vila de Alcáçovas em 4/9/1479”.
Este “manuscrito composto por 114 folhas em papel cosidas em cadernos”, na descrição do ANTT, está directamente relacionado com o Tratado de Alcáçovas, assinado nesse ano, e ajuda os historiadores a entenderem melhor o percurso que levou depois ao Tratado de Tordesilhas (1494).
Silvestre Lacerda avançou ao PÚBLICO a intenção de o ANTT realizar um colóquio a chamar a atenção para a relação entre o documento recentemente adquirido e outros testemunhos já existentes nos arquivos nacionais sobre esta época.