Será Bolsonaro eticamente irreprovável?
A limpeza ética de Paulo Portas esquece que o discurso incendiário do Presidente eleito tem consequências.
Segundo a Folha de São Paulo, Bolsonaro terá dito, comentando o assassinato do mestre de capoeira Moa do Katendê por um apoiante seu: “Quem levou a facada fui eu, pô. Um cara lá que tem uma camisa minha, comete um excesso, o que eu tenho a ver com isso?” Senhor Presidente eleito, tem bastante a ver com isso. Passo a explicar porquê.
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Segundo a Folha de São Paulo, Bolsonaro terá dito, comentando o assassinato do mestre de capoeira Moa do Katendê por um apoiante seu: “Quem levou a facada fui eu, pô. Um cara lá que tem uma camisa minha, comete um excesso, o que eu tenho a ver com isso?” Senhor Presidente eleito, tem bastante a ver com isso. Passo a explicar porquê.
Sabemos que as percepções das pessoas acerca do mundo são manipuláveis e influenciam os seus comportamentos. A manipulação é mais fácil quanto maior o desconhecimento do assunto em causa, o que torna a política terreno fértil para manipulações, porque o eleitorado tem muitas vezes pouca informação acerca dos factos. No artigo “A Economia Política do Ódio”, publicado em 2005 no Quarterly Journal of Economics, o economista Edward Glaeser apresenta uma teoria do ódio como resultante da interação entre os políticos, que o disseminam, e as cidadãs e cidadãos, que se deixam persuadir. O artigo cita o ódio contra os afro-americanos na América pós-esclavagista, o anti-semitismo na Alemanha de há um século ou o anti-americanismo no Médio Oriente como exemplos das consequências trágicas do discurso instigador promovido por certas elites políticas. O ódio é perpetrado pelos políticos através da repetição de histórias negativas acerca de determinados grupos da população, quando estas histórias os ajudam a ganhar terreno político. Isto acontece quando o opositor propõe políticas que beneficiam esse grupo. Goebbels terá dito que “se repetirmos uma mentira suficientemente, esta torna-se verdade”. Isto acontece quando o eleitorado aceita, sem escrutínio, as narrativas negativas dos políticos. Como a distância geográfica, étnica ou sócio-económica ao grupo alvo do ódio dificulta o escrutínio, uma sociedade com maior segregação, ou menor integração, entre grupos distintos da população é terreno fértil para o ódio se propagar. O Brasil, com a sua desigualdade gritante, o seu urbanismo de guetos e as suas divisões étnicas, é como um pavio que a faísca de Bolsonaro pode incendiar facilmente.
Mas o que levará os indivíduos a reagir à persuasão de um líder? A investigação em economia experimental mostra-nos que as pessoas são mais generosas com quem faz parte do seu grupo e mais agressivas com quem está de fora. Não se assuste, cara leitora; um laboratório, para um economista, é uma sala com computadores onde as pessoas participam em jogos que reproduzem situações da vida real. Isto não acontece apenas no laboratório; num programa de treino de quatro semanas do exército suíço, em que os oficiais são distribuídos de forma aleatória por pelotões, os economistas Lorenz Goette, David Hauffman e Stephan Meier identificam agressividade relativa aos membros dos outros pelotões. Gary Charness, Luca Rigotti e Aldo Rustichini concluem, utilizando jogos estratégicos em laboratório, que mais do que pertença a um grupo é o facto de essa pertença estar presente na mente do indivíduo ou, em termos mais técnicos, tornada “saliente”, que leva as pessoas a terem comportamentos agressivos contra quem não pertence ao mesmo grupo. É isto que os discursos de ódio fazem: reforçam a lógica do “nós” contra “eles”, quem é do grupo contra quem não é. E, com isso, fomentam os comportamentos agressivos.
Paulo Portas afirmou não encontrar “nos 27 anos de vida pública do capitão Bolsonaro nenhum indicador eticamente reprovável em termos pessoais”. Também Assunção Cristas respondeu com um “nim” abstencionista quando confrontada com a pergunta “em quem votaria se fosse brasileira?”. Esta atitude de normalização do discurso de ódio de Bolsonaro foi promovida por alguns cronistas, como assinalou – e bem – David Dinis no texto “Aos meus amigos do Observador (e à Assunção Cristas)”, publicado no Eco.
Se Portas se refere à ação política de Bolsonaro, pode ser que tenha razão. Os media brasileiros afirmam que ao longo da sua carreira política de 30 anos, Bolsonaro não se destacou pelas iniciativas legislativas, tendo apenas um projeto da sua autoria convertido em lei. Mas a limpeza ética de Portas esquece que o discurso incendiário do Presidente eleito tem consequências, através de atos de ódio levados a cabo pelos seus seguidores. Portanto, não é preciso uma lupa para encontrar na carreira política de Jair Bolsonaro muita coisa eticamente reprovável.
Jair Bolsonaro não está sozinho. Os Estados Unidos assistiram nas últimas semanas a uma série de crimes de ódio, incluindo o triste episódio das cartas armadilhadas, o ataque à sinagoga de Pittsburgh e o assassinato de dois afro-americanos num supermercado no estado de Kentucky. O Financial Times, insuspeito de ser um órgão de propaganda da esquerda radical, ligou o recrudescimento do crime perpetrado por supremacistas brancos ao discurso de ódio de Trump. É muito provável que tenha razão.
A autora escreve segundo o novo Acordo Ortográfico