Desavindos em tudo o resto, UE e Turquia apregoam sintonia na resposta à crise de refugiados
A atravessar um dos piores momentos do seu relacionamento, Bruxelas e Ancara levaram à prática em solo turco dezenas de projectos de apoio a refugiados, na sequência do controverso acordo de 2016 para regulação do fluxo migratório. “A abordagem é estritamente humanitária”, garante a Comissão Europeia.
Nos dias que correm, entre Bruxelas e Ancara distam bastante mais do que os 3 mil quilómetros que as separam. Quer na capital belga, onde tem sede o grosso da máquina política e burocrática da União Europeia – e que é aqui referida simbolicamente –, quer na capital da Turquia, onde Recep Tayyip Erdogan vai perpetuando o seu poder, ninguém esconde que as relações entre os dois blocos arrefeceram, e muito, nos últimos anos.
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Nos dias que correm, entre Bruxelas e Ancara distam bastante mais do que os 3 mil quilómetros que as separam. Quer na capital belga, onde tem sede o grosso da máquina política e burocrática da União Europeia – e que é aqui referida simbolicamente –, quer na capital da Turquia, onde Recep Tayyip Erdogan vai perpetuando o seu poder, ninguém esconde que as relações entre os dois blocos arrefeceram, e muito, nos últimos anos.
Na Europa aponta-se o dedo à deriva autoritária de Erdogan pós-tentativa falhada de golpe de Estado e às ofensivas militares turcas na Síria; na Turquia critica-se o clima opressivo e xenófobo contra a sua diáspora de milhões, em países como a Alemanha, a Holanda ou a Áustria. E pelo meio há ainda um processo congelado de adesão turca à UE. Mas é neste ambiente de tensão máxima que os dois vão desenvolvendo e aprofundando alguns dos mais arrojados e dispendiosos programas de apoio a refugiados da actualidade.
Nos últimos dois anos foram mais de 70 os projectos de ajuda humanitária, de educação, de saúde, de apoio social, de habitação, de infra-estruturas ou de gestão migratória realizados em território turco com fundos europeus e direccionados aos quase 4 milhões de refugiados que, de acordo com o Ministério do Interior da Turquia, se encontram actualmente no país.
Entre contribuições dos Estados-membros e alocações do orçamento comunitário, foram libertados mais de 3 mil milhões de euros dos cofres europeus, correspondentes ao período 2016-2017, para o programa de apoio aos refugiados. A eles se acresce um princípio de acordo, entre Bruxelas e Ancara, para a afectação de outros 3 mil milhões, apontados ao período 2018-2019.
A estreita cooperação entre turcos e europeus na assistência aos refugiados na Turquia nasceu do controverso acordo assinado em 2016 para regular o fluxo migratório, que incluiu a concepção de um sistema de deportação para a Turquia de todos os imigrantes que cheguem à Grécia de forma ilegal. Em troca, para além da promessa europeia de financiamento de programas de apoio humanitário, a UE comprometeu-se a receber um refugiado sírio por cada pessoa reenviada das ilhas gregas para a Turquia.
Dois anos depois e apesar das acusações de “imoralidade” e “ilegalidade” dirigidas por organizações humanitárias e dirigentes políticos – que entendem que a UE está a pagar a Ancara para não ter de se preocupar com mais refugiados –, a Comissão Europeia congratula-se com a redução em 97% das entradas irregulares através do mar Egeu. E a Turquia agradece a generosidade europeia para lidar com o fluxo sem precedentes de pessoas, que nos últimos anos a transformaram no país com maior número de refugiados do mundo.
“Não nos queremos intrometer”
Em Bruxelas e Ancara há, por isso, a perfeita noção de que a manutenção do mecanismo existente é vantajosa para toda a gente – o comissário europeu para as Migrações Dimitris Avramopoulos fez referência a isso mesmo, em Março, dizendo que o mesmo “é do interesse de todos” e garantindo que os fundos são para projectos e não para “o Governo turco”. Mas como se coopera neste âmbito – e com estas quantias envolvidas – estando de costas voltadas em praticamente tudo o resto?
Mathias Eick, que dirige o gabinete de comunicação da representação de Ancara da ECHO – o organismo da Comissão Europeia responsável pela ajuda humanitária e protecção civil –, não tem problemas em assumir que a “tensão existe” e que a parceria humanitária “também sente essa pressão adicional” criada por um momento “difícil” nas relações entre os blocos. O segredo, no entanto, tem sido a capacidade das partes, e particularmente da UE, em manter o foco numa “abordagem estritamente humanitária”.
“Neste tipo de projectos é essencial não desafiar a comunidade anfitriã. Não estamos a imiscuir-nos nas competências do Estado [turco], não nos queremos intrometer. Estamos aqui para contribuir e prestar apoio”, explica Eick. “E a cooperação tem sido sempre bastante construtiva”.
O princípio da “não-intromissão” europeia na implementação do programa de assistência, destacado pelo funcionário da ECHO, está muito presente na natureza dos próprios projectos. Isto porque, excluindo o financiamento, à UE acresce apenas um papel de acompanhamento e monitorização. Quem implementa de facto os projectos são organizações e agências de cariz humanitário, como o Crescente Vermelho Turco, a UNICEF, a WFP ou a Relief International, em colaboração com as autoridades turcas.
Vantagens de um Estado forte
Com maior ou menor polémica, a sociedade humanitária Bruxelas-Ancara parece estar a dar frutos. De acordo com os dados recolhidos pela ECHO, dos 4 milhões de refugiados que residem na Turquia – entre os quais 3,5 milhões de sírios, que beneficiam de protecção temporária, para além de iraquianos, afegãos, iranianos e somalis –, “apenas” 180 mil se encontram, actualmente, em campos de acolhimento geridos pelas autoridades turcas.
Através do mecanismo de assistência, cerca 1,3 milhões de refugiados estão a receber assistência financeira para as suas necessidades básicas – através do ESSN, o maior programa humanitário da história da UE – e 300 mil crianças estão envolvidas em programas de educação. O programa ajudou ainda à realização de mais de 760 mil consultas de cuidados de básicos de saúde.
A implementação bem-sucedida de alguns dos projectos também encontra explicação nas características específicas do Estado turco. “A UE costuma trabalhar e gerir projectos humanitários em Estados fracos. Mas a Turquia é um Estado forte, o que nos traz uma enorme vantagem na concepção e execução dos projectos”, afirma Mathias Eick. “Só o facto de a Turquia possuir um sistema bancário eficiente já nos permite uma série de possibilidades para a aplicação dos fundos”, exemplifica.
Por enquanto, turcos e europeus estão satisfeitos com a cooperação. Mas os próximos capítulos da guerra na Síria poderão alterar as circunstâncias dos refugiados na Turquia, quer pela possível chegada de mais pessoas, quer pelo eventual regresso dos que lá estão. Uma e outra situação colocarão à prova o acordo de 2016 e a resistência de uma parceria isolada numa relação conflituosa.
O jornalista viajou a convite da Comissão Europeia