A favor de uma sinergia entre a 4.ª Revolução Industrial e a 4.ª Onda do Feminismo
A 4.ª onda do feminismo tem sobretudo a ver com o uso das TICs como ferramenta de resistência, protesto e debate.
A 4.ª revolução industrial e a 4.ª onda do feminismo são duas “4.ªs”, que podem ser vistas como as duas faces da mesma moeda. O que quero dizer aqui é que a história das tecnologias e a história do feminismo desenvolvem-se quase em paralelo, embora sejam divergentes. Uma diferença é que enquanto a primeira impõe mudança e é cheia de profecias académicas, a segunda bradeja por mudança e é cheia de convulsões sociais. A sincronia das duas poderá apresentar, no entanto, uma oportunidade para as mulheres no mundo e sobretudo em Portugal. O que têm a 4.ª revolução industrial e a 4.ª onda do feminismo em comum para além do trendy “4.ª”? Uma resposta curta e simplista seria: tecnologia. A 4.ª onda do feminismo tem sido discutida e conceptualizada em diversas disciplinas e em espaços de ativismo, mas a sua definição tem sobretudo a ver com o uso das TICs como uma ferramenta de resistência, protesto e debate por mulheres e homens jovens feministas. Os media sociais, como o Twitter, Instagram ou Facebook, são considerados o berço desta nova onda.
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A 4.ª revolução industrial e a 4.ª onda do feminismo são duas “4.ªs”, que podem ser vistas como as duas faces da mesma moeda. O que quero dizer aqui é que a história das tecnologias e a história do feminismo desenvolvem-se quase em paralelo, embora sejam divergentes. Uma diferença é que enquanto a primeira impõe mudança e é cheia de profecias académicas, a segunda bradeja por mudança e é cheia de convulsões sociais. A sincronia das duas poderá apresentar, no entanto, uma oportunidade para as mulheres no mundo e sobretudo em Portugal. O que têm a 4.ª revolução industrial e a 4.ª onda do feminismo em comum para além do trendy “4.ª”? Uma resposta curta e simplista seria: tecnologia. A 4.ª onda do feminismo tem sido discutida e conceptualizada em diversas disciplinas e em espaços de ativismo, mas a sua definição tem sobretudo a ver com o uso das TICs como uma ferramenta de resistência, protesto e debate por mulheres e homens jovens feministas. Os media sociais, como o Twitter, Instagram ou Facebook, são considerados o berço desta nova onda.
Um exemplo mundial: o movimento #MeToo. Este movimento reside na indignação com a persistente opressão da mulher através do assédio sexual nos espaços públicos e de trabalho, da cultura da violação, e do feminicídio em geral e a falta de políticas para assegurarem o tratamento digno da mulher. No entanto, estas duas “4.ªs” unem-se sobretudo por se traduzirem no estado atual, desigual e complexo da sociedade contemporânea. Fala-se muito no contexto da 4.ª revolução industrial como uma mudança social, tecnológica e política causada pelo potencial uso massificado de robôs, a automatização do trabalho, o controlo genético e a inteligência artificial. Esta promessa de revolução propaga-se ao mesmo tempo que o mais recente relatório Global Gender Gap, feito em 2017 pelo Fórum Económico Mundial, argumenta que poderão ser necessários mais 217 anos para que as mulheres alcancem paridade salarial e representatividade no espaço laboral com os homens no mundo.
Enquanto este último dado é um desassossego por si só, quais seriam as possíveis oportunidades que uma sinergia destas duas 4.ªs poderia representar? É neste ponto que Portugal apresenta uma realidade frutífera e promissora. Embora haja ainda muitas desigualdades de género no país, o index Women in Tech, feito em 2018, indicou Portugal como um dos melhores países para mulheres que buscam uma carreira em tecnologia. O índice mostrou também que a diferença na disparidade salarial entre homens e mulheres no contexto da economia global e da indústria de tecnologia, em Portugal, é uma das menores entre 41 países. Portugal ficou em quinto lugar, à frente dos EUA, Reino Unido e França. Além disso, um estudo da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico) intitulado The Pursuit of Gender Equality aferiu que o número de mulheres em Portugal que estudam ciências, tecnologia, engenharia ou matemática é superior ao de homens nas mesmas áreas.
Nesta conjuntura atual da 4.ª revolução industrial em combinação temporal com a 4.ª onda do feminismo, neste espaço frutífero que é Portugal, as mulheres têm uma oportunidade acrescentada e única na história para intervirem de forma interseccional e fazerem com que esta avalanche tecnológica que vem por aí não seja mais uma fonte de opressão. É preciso incluir neste debate questões estruturais e interseccionais, como a divisão sexual do trabalho, horas de trabalho versus maternidade e paternidade, igualdade salarial versus igualdade racial e socioeconómica, e a exploração de mão de obra e recursos materiais noutros países menos desenvolvidos. Se usarmos como exemplo uma das TICs mais adoptadas globalmente – o smartphone –, podemos dizer que o mesmo é produzido em situações laborais abomináveis na China, como já bem sabemos. E pior do que isto é a necessidade do mineral Coltan para a produção destes gadgets. Um dos poucos lugares no mundo onde se pode encontrar este material é na África Central, especificamente no Congo, onde mineradores trabalham num sistema feudal e colonial, para prover material bruto para multinacionais. O aumento do valor do Coltan no mercado global tem efeitos locais (no Congo) graves, como o aumento da exploração e conflitos entre milícias, com consequências específicas para as mulheres, nomeadamente violação e prostituição.
Se ainda não conseguimos ultrapassar estas limitações ainda na terceira revolução industrial, como será nesta aclamada 4.ª revolução industrial? Para entendermos o presente, vejamos como as revoluções industriais e as ondas do feminismo se desenvolveram quase em paralelo, mas de uma maneira completamente desfasada. A 1.ª revolução industrial, no século XVIII (1780-1830), associada à invenção da máquina a vapor, foi seguida uma década depois pela primeira onda de feminismo (1840-1920), que, por sua vez, sobrepõe-se também com a segunda revolução industrial (1870-1914), em que o telégrafo e linhas ferroviárias possibilitaram a difusão de ideias e pessoas. No entanto, enquanto o mundo ocidental se revestia em brilhantismo tecnológico, as mulheres nem sequer podiam votar. Nesse período surgiu o movimento conhecido como “sufrágio feminino”. Foi Carolina Beatriz Ângelo (1878-1911) a primeira mulher a exigir este direito em Portugal. O feminismo é um termo cheio de curvas teóricas, controvérsias e dualismos. No entanto, é de algo parecido com o feminismo de Carolina que escrevo aqui, aquele que permitiu às mulheres brancas votarem ou conduzirem (o direito ao voto das mulheres e homens negros foi mais complexo). O feminismo que rejeita o sistema do patriarcado, onde somente uma minoria de homens brancos e heteronormativos tendem a tomar decisões. Enquanto a 1.ª onda do feminismo se dedicara principalmente à reivindicação do voto e à superação de obstáculos legais à igualdade de género, a 2.ª onda (1960-1980) amplificou a luta e destinou-se a questionar o restrição da mulher ao espaço doméstico, o seu trabalho doméstico não-remunerado em detrimento da sua quase extinta participação cívica em questões regentes da esfera pública, como economia e política.
A 3.ª revolução industrial (1980-presente), associada com os efeitos causados pela difusão das tecnologias de informação e comunicação (TICs), em que o conhecimento passa a ser evocado como a principal fonte de riqueza, coincide com o surgimento da 3.ª onda do feminismo (1980-2013). É nesta 3.ª onda que a noção e teoria da interseccionalidade entra na engrenagem social do feminismo. Feministas negras norte-americanas cunharam o termo para explicarem que as questões de género não estão e não devem ser dissociadas de outras identidades sociais ou de outras “camadas de opressão” determinadas, por exemplo, pela raça, etnia, classe social, nacionalidade ou geração. Um exemplo muito simples de interseccionalidade é o facto de a mulher negra estar propensa, em relação à mulher branca, a sofrer pelo menos mais um tipo de opressão, para além do machismo: o racismo. Estas camadas de opressão podem ser mais complexas, à medida que uma mulher acumula outras identidades sociais relacionadas com uma classe socioeconómica mais baixa, ser homossexual ou transgénero, ou imigrante, por exemplo.
Estas tais camadas de opressão levam-nos ao tempo presente, em que se instala no espaço público um debate quase sempre iniciado e dominado por homens, sobre a 4.ª revolução industrial (Klaus Schwab, 2016; Alec Ross, 2016; Alasdair Gilchrist, 2016) e os seus efeitos. Este momento dito como um ponto de viragem em que o mundo físico, digital e biológico vem a fundir-se coincide com um certo ressurgimento do feminismo entendido por alguns como a 4.ª onda de feminismo (2008 até ao presente).
Os homens ocidentais brancos ainda dominam os meios produção de tecnologia e o discurso tecnológico no mundo, mas os índices internacionais indicam que o cenário em Portugal é favorável às mulheres, pelo menos no que toca à tecnologia. No que diz respeito às questões de assédio sexual, violação e feminicídio, a situação em Portugal é tão grave como no resto do mundo. Por esta e outras razões, não basta ter mulheres no poder, ou que pensem ou produzam tecnologia, que não desafiem o status quo. É por isto mesmo que seria uma autêntica revolução ver este debate sobre esta vindoura 4.ª revolução industrial no espaço público enriquecido pelo ponto de vista interseccional iniciado e liderado também por mulheres que desafiam sim o estado corrente das coisas. Através de uma sinergia entre as profecias académicas da 4.ª revolução industrial e das causas sociais da 4.ª onda do feminismo, pode ser que consigamos juntos (homens e mulheres) eliminar esta diferença: a 4.ª revolução industrial impõe mudança, a 4.ª onda do feminismo bradeja por mudança.