Ordem judicial para libertar cristã acusada de blasfémia gera vaga de protestos no Paquistão
Asia Bibi, a mulher condenada em 2010 pelo crime de blasfémia, vai ser libertada. Face o veredicto, o grupo islâmico Tehreek-e-Labbaik Pakistan ameaçou de morte os juízes. Ainda assim, “é uma vitória importante para a tolerância religiosa no Paquistão”, diz a Amnistia Internacional.
O Supremo Tribunal do Paquistão revogou esta quarta-feira a sentença de morte de Asia Bibi, a mulher cristã condenada à morte em 2010 por blasfémia. A decisão histórica desencadeou protestos do grupo islâmico Tehreek-e-Labbaik Pakistan e dos seus apoiantes, causando alarme pelo clima de violência.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
O Supremo Tribunal do Paquistão revogou esta quarta-feira a sentença de morte de Asia Bibi, a mulher cristã condenada à morte em 2010 por blasfémia. A decisão histórica desencadeou protestos do grupo islâmico Tehreek-e-Labbaik Pakistan e dos seus apoiantes, causando alarme pelo clima de violência.
O juiz presidente do Supremo, Mian Saqib Nisar, anunciou que Asia Bibi deveria ser “libertada de imediato”, no veredicto de 56 páginas divulgado três semanas depois de a decisão ter sido tomada, a 8 de Outubro.
Os três juízes do Supremo consideraram não haver provas que suportassem as acusações contra Bibi. De acordo com a sentença, as duas mulheres responsáveis pela denúncia “tinham razões para apresentar alegações falsas contra a requerente”. Para além disso, “a acusação falhou categoricamente [na tentativa de] provar o seu caso”, diz o documento.
Durante a leitura da sentença foram várias as referências ao Corão e à história do islão, que "tem como princípio base a tolerância", disse o juiz presidente Nisar. O juiz Asif Khosa acrescentou que “é irónico que na língua árabe o nome da recorrente, Asia, signifique ‘pecador’, mas nas circunstâncias do presente caso, ela parece ser uma pessoa, nas palavras do Rei Lear de Shakespeare, ‘mais vítima de culpa, do que mesmo culpada’”.
"Vou sair?"
Asia Bibi, detida há oito anos, disse à AFP que ainda não consegue acreditar na decisão: “Não consigo acreditar no que estou a ouvir, vou sair? Vão deixar-me sair, a sério? Não sei o que dizer, estou muito feliz, não consigo acreditar”.
“O veredicto mostrou que os pobres, as minorias e as classes mais baixas da sociedade podem ter justiça neste país, apesar dos obstáculos”, considerou o seu advogado, Saif-ul-Mulook, ouvido pela mesma agência de notícias. “Este é o dia mais feliz da minha vida.”
O veredicto foi seguido de manifestações e ameaças de morte aos três juízes do Supremo. Apoiantes do grupo político Tehreek-e-Labbaik Pakistan (TLP), que defendem a lei da blasfémia, bloquearam ruas em Lahore, na província do Punjab, e atiraram pedras às autoridades.
Segundo a agência Reuters, o co-fundador do TLP, Muhammad Afzal Qadri, afirmou que os três juízes “mereciam ser mortos”: “Os seus seguranças deviam matá-los, ou os motoristas, ou os cozinheiros. Quem tiver acesso, mate-os antes de anoitecer”. O jornal paquistanês Dawn escreve que cerca de 300 polícias e unidades de paramilitares foram destacadas para a capital, Islamabad, para evitar que os manifestantes chegassem ao Supremo Tribunal, onde a segurança também foi reforçada.
A mulher cristã – uma minoria religiosa no Paquistão –, foi condenada à morte depois de ter entrado num confronto verbal em 2009 com duas muçulmanas, que se recusaram a beber do seu copo de água invocando a sua religião. Após Bibi ter rejeitado as insistências das mulheres para se converter ao islão, estas acusaram-na perante uma multidão de ter insultado Maomé com “três afirmações difamatórias e sarcásticas”, diz o relatório da Comissão Internacional de Juristas.
Bibi sempre se declarou inocente, ainda que a acusação diga que “admitiu” as denúncias num “encontro público” e tenha “pedido perdão”. Em 2016, o seu pedido de recurso foi adiado sem data pelo Supremo Tribunal, depois de um dos juízes se ter escusado do processo. Para além de ter sido a primeira mulher condenada pelo crime de blasfémia no Paquistão, por pouco não se tornava a primeira pessoa a ser executada pelo mesmo.
O Presidente da Comissão dos Estados Unidos para a Liberdade Religiosa Internacional, Tenzin Dorjee, disse em comunicado que o caso de Bibi “ilustra até onde as leis da blasfémia podem ser exploradas para afectar as minorias”, acrescentando que é “perturbador que tenha chegado ao ponto de Bibi quase se ter tornado a primeira pessoa na história do Paquistão a ser executada pelo crime de blasfémia”.
O marido de Bibi, Ashiq Masih, agradeceu aos juízes por lhes terem dado justiça, em declarações ao Dawn: “Estamos muitos felizes. Estamos gratos a Deus. Estamos gratos aos juízes por nos terem dado justiça. Sabíamos que ela era inocente”. Contudo, disse que não podem permanecer no Paquistão quando Bibi for libertada, devido à falta de segurança.
“Não saímos de casa e se saímos, temos muito cuidado. A vida no Paquistão é muito difícil para nós”, disse.
Intervenções do Vaticano
O caso obteve atenção internacional em 2010, quando o Papa Bento XVI pediu que Bibi fosse libertada, e, em 2015, o Papa Francisco recebeu uma das suas filhas. Em Fevereiro de 2018, o chefe da Igreja católica recebeu Masih, que disse que a esposa “estava pronta e disposta a morrer por Cristo”.
O governador da província de Punjab, Salmaan Taseer, foi assassinado pelo seu guarda-costas em 2011, após ter defendido Bibi e ter criticado as leis da blasfémia. O seu assassino, Mumtaz Qadri, é celebrado como mártir desde que foi condenado à morte pelo crime, estando até na base da criação do TLP, o partido responsável pelo clima de violência que se faz sentir. O ministro das Minorias, Shahbaz Bhatti, foi também assassinado em 2011, após pedir justiça para Bibi.
O filho do governador assassinado, Shahbaz Taseer, disse ao diário The Guardian que finalmente havia justiça: “É uma grande vitória para o meu pai, para o Paquistão, para os pobres, para o sistema judicial, para todas as pessoas marginalizadas neste país. Vi tanto na minha curta vida, nunca vi nada assim. Fui libertado [após cinco anos em cativeiro depois de ter sido raptado pelos taliban] no mesmo dia que Mumtaz Qadri [o assassino do seu pai] foi enforcado. Mas isto é ainda melhor, isto é justiça, finalmente”.
O director da Amnistia Internacional para o Sul da Ásia, Omar Waraich sublinhou que “este é um veredicto histórico e uma vitória importante para a tolerância religiosa no Paquistão”. Acrescentou ainda que “as leis da blasfémia não vão ser mais usadas para perseguir as minorias religiosas que há muito sofrem”.
Segundo o relatório de 2018 da Comissão dos Estados Unidos para a Liberdade Religiosa Internacional, foram registados 100 casos de condenações por blasfémia desde 2011. Muitas dessas pessoas encontram-se detidas pelo crime e 40 aguardam sentenças de morte. Outras foram mortas por multidões, independentemente da veracidade das acusações, diz o relatório.
Texto editado por Sofia Lorena