Os novos “galimares”
A coroa de espinhos da pequena edição independente portuguesa por aí continua em disputa ou partilha. O que parece ir faltando é quem consiga distinguir os galimares dos Gallimards.
A 26 de Fevereiro de 1976, Lisboa amanheceu sem saber que fora palco de uma coroação. Acontecera esta, é certo, apenas nas páginas do Diário Popular, e a cerimónia fora o mais frugal possível, efeito da paupérrima situação financeira da autoridade coroadora: Luiz Pacheco, num texto intitulado “O galimar da Rua da Emenda”, proclamara a continuação da dinastia na pessoa de Vitor Silva Tavares, editor da então recém-criada &etc, apondo-lhe a simbólica coroa que retirara da cabeça do anterior monarca, Fernando Ribeiro de Mello da Afrodite (que, uma década antes, lhe sucedera no “trono”), por aparentes falhas deste, sendo a “comercialice” a maior. De que dinastia se tratava? A dos editores portugueses independentes, marginais, intransigentes defensores da qualidade das suas edições, arredios dos lugares de poder e dos interesses corporativos (Mello, por exemplo, nunca se registara no Grémio de Editores e Livreiros antes de 1974, e Pacheco saíra dele muitos anos antes), ferozmente orgulhosos da sua identidade e da sua independência. Pacheco poderia mesmo ter invocado o termo com que, meses antes, Orson Welles, no momento de receber um prémio de carreira do American Film Institute, designara o seu “tipo”: o maverick, ou seja, o não-alinhado, o tresmalhado. Mas a escolha de "galimar" não deixou de ser certeira: um galimar definia-se pela ausência de tudo o que definia um todo-poderoso Gallimard (muito dinheiro, estatuto social, peso quase institucional, poder de facto na sua esfera de actuação), excepto a dedicação apaixonada ao livro e a procura de um catálogo sem concessões. Editores “à rasca”, loucos mesmo (como dissera Welles dos que investiam o pouco dinheiro – seu e alheio – e a curta vida numa paixão que, para outros, era apenas um emprego), mas editores.
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A 26 de Fevereiro de 1976, Lisboa amanheceu sem saber que fora palco de uma coroação. Acontecera esta, é certo, apenas nas páginas do Diário Popular, e a cerimónia fora o mais frugal possível, efeito da paupérrima situação financeira da autoridade coroadora: Luiz Pacheco, num texto intitulado “O galimar da Rua da Emenda”, proclamara a continuação da dinastia na pessoa de Vitor Silva Tavares, editor da então recém-criada &etc, apondo-lhe a simbólica coroa que retirara da cabeça do anterior monarca, Fernando Ribeiro de Mello da Afrodite (que, uma década antes, lhe sucedera no “trono”), por aparentes falhas deste, sendo a “comercialice” a maior. De que dinastia se tratava? A dos editores portugueses independentes, marginais, intransigentes defensores da qualidade das suas edições, arredios dos lugares de poder e dos interesses corporativos (Mello, por exemplo, nunca se registara no Grémio de Editores e Livreiros antes de 1974, e Pacheco saíra dele muitos anos antes), ferozmente orgulhosos da sua identidade e da sua independência. Pacheco poderia mesmo ter invocado o termo com que, meses antes, Orson Welles, no momento de receber um prémio de carreira do American Film Institute, designara o seu “tipo”: o maverick, ou seja, o não-alinhado, o tresmalhado. Mas a escolha de "galimar" não deixou de ser certeira: um galimar definia-se pela ausência de tudo o que definia um todo-poderoso Gallimard (muito dinheiro, estatuto social, peso quase institucional, poder de facto na sua esfera de actuação), excepto a dedicação apaixonada ao livro e a procura de um catálogo sem concessões. Editores “à rasca”, loucos mesmo (como dissera Welles dos que investiam o pouco dinheiro – seu e alheio – e a curta vida numa paixão que, para outros, era apenas um emprego), mas editores.
Ainda que mortos já Mello, Pacheco e Tavares, essa coroa de espinhos da pequena edição independente portuguesa por aí continua em disputa ou partilha. Nunca deixou de está-lo, aliás: pouco depois da coroação de 1976, já Fenda, Frenesi, Hiena ou Antígona podiam aspirar ao trono. Mas o que parece ir faltando cada vez mais é quem consiga distinguir entre os genuínos aspirantes e os que o não são, isto é, entre os “galimares” e os "Gallimards".
Agosto de 2018, pico da silly season. Numa daquelas entrevistas curtas e superficiais, questionários de Proust com farinha Maizena para encorpar, e sem que se esperasse, eis uma nova coroação, desta feita não às mãos de um outro editor, veterano medalhado e ferido de perdidas batalhas, mas da própria jornalista que orientava a entrevista. Por esta ficámos a saber que o novo imperador a ostentar a incómoda coroa da linhagem de quase falidos editores nacionais é um jovem “coordenador cultural da Porto Editora”, que, além do atributo real, herdou também a casa-mãe da dinastia: a Contraponto, essa mesma fundada por Luiz Pacheco, de que ele é agora apresentado como “relançador”, e na qual lançará, porventura à laia de justificar a unção da sua jovem cabeça, umas biografias de gente que conheceu o fundador da Contraponto e nela foi publicada (Natália, Herberto). Num mesmo corpo, um novo imperador e uma reencarnação. Em suma, um acto messiânico, um verdadeiro milagre oferecido ao distraído leitor comum, entre um mergulho e outro.
Não teria sido muito difícil, contudo, a esse mesmo leitor descobrir que esta Contraponto e a original partilham apenas o nome, e que, apesar do crédito de “conseguir dizer mais palavrões” do que Pacheco, entre este e o jovem editor pouco mais há que os una (o que o próprio admite na entrevista, honra lhe seja pela perspicácia). Uma pesquisa rápida ao catálogo desta Contraponto arrumará a questão para quem conheça um terço do que Luiz Pacheco montou ao longo dos anos, e não será difícil entender também que, como alto funcionário do grupo editorial dominante em Portugal (no qual esta Contraponto é uma chancela entre outras), e precisamente por sê-lo, este jovem editor nada tem do solitário equilibrista na corda bamba que estava em todos os dessa antiga dinastia. Tenha o que tiver de um Gallimard (além da poderosa estrutura que o sustenta), o certo é que muito dificilmente Pacheco hoje apontaria nele os atributos de um “galimar da Rua Dr. Jorge Silva Horta”.
A apropriação dos atributos de marginalidade, de rebeldia e de independência (mesmo de uma certa fragilidade) por parte de quem os não tem e deles precisa apenas para, estrategicamente, ganhar pontos nas batalhas pelo domínio do “campo cultural” é já proverbial (há anos, em The Conquest of Cool, Thomas Frank mostrou como as corporações americanas, através do seu braço promocional, os “mad men” de Madison Avenue, reinventaram na década de 1960 a sua imagem, apropriando-se das características da contra-cultura). No estrito campo da edição, essa apropriação fazia algum sentido no início da vaga de aquisições de editoras por parte de grandes grupos financeiros, há 40 anos: era importante garantir ao leitor que o livro que tinha em mãos era produzido sob o mesmo espírito de independência de antes (mas, como provou André Schiffrin em The Business of Books, as máscaras não levaram muito tempo a cair e a revelar a face lupina e voraz dos novos donos dessa tradição). No ainda mais particular cenário da edição portuguesa de 2018, um mercado que pende para o lado de quem controla a maior rede de livrarias e a maior distribuidora (e que, no nicho dos manuais escolares, tem um tal domínio que um acidente na gráfica onde eles se imprimem chegou a pôr em risco o arranque do ano lectivo), em que fecham pequenas livrarias ou alfarrabistas e em que o ónus da edição “de risco” está do lado de minúsculos projectos editoriais sobrevivendo à míngua, esta aproximação forçada seria apenas uma bizarra mas inocente mascarada se não apontasse a um perigoso apagamento dos contrastes que costumavam ser o sinal de um mercado saudável, e, pela sua repetição ao longo dos anos, a um apagamento desses contrastes na diacronia histórica: acreditará um futuro estudioso da edição portuguesa que esta Contraponto era capaz de lançar agora um Homúnculo de Natália ou uma edição pirata de Herberto, como o fez Pacheco há 50 e há 40 anos? O perigo maior, porém, é o da indiferença e do silêncio de quem devia reagir a estas quase sussurradas apropriações e não o faz.
Sabendo que, muito melhor do que a minha, encontrará o Pacheco editor (e os "galimares" que lhe seguiram) defesa nos admiradores, leitores, exegetas e biógrafos que ainda tem, dou a palavra final, quanto à confusão entre pequenos e grandes, independentes e funcionários (que parece ter aturdido a jornalista e o executivo), a Joaquim Vital, editor português em Paris durante mais de 30 anos na sua Éditions de la Différence, a propósito do príncipe dos editores raivosamente independentes e marginais, Maurice Girodias: “para mim, um editor é independente ou não é editor.”