Com Bolsonaro, o risco não é de golpe, é de erosão da democracia
A eleição de um Presidente de extrema-direita não é o primeiro sinal de degradação democrática no maior país da América do Sul. Mas pode levar a uma grande aceleração negativa.
Os eleitores de Jair Bolsonaro votaram nele a desejar o regresso à ditadura? Alguns certamente, mas a maioria votou apenas contra o Partido dos Trabalhadores (PT), sem concordar completamente com o que o novo Presidente defende, e atraídos pelo carisma de um populista. Não levam a sério a possibilidade do regresso da ditadura, nem as palavras de Bolsonaro a elogiar o coronel Carlos Brilhante Ustra, o primeiro militar condenado pela prática de tortura durante o regime militar (1964-1985).
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Os eleitores de Jair Bolsonaro votaram nele a desejar o regresso à ditadura? Alguns certamente, mas a maioria votou apenas contra o Partido dos Trabalhadores (PT), sem concordar completamente com o que o novo Presidente defende, e atraídos pelo carisma de um populista. Não levam a sério a possibilidade do regresso da ditadura, nem as palavras de Bolsonaro a elogiar o coronel Carlos Brilhante Ustra, o primeiro militar condenado pela prática de tortura durante o regime militar (1964-1985).
Mas o político a quem os seus apoiantes chamam “mito” é visto com preocupação pelo cientista da Universidade de Harvard Steve Levitsky, autor do livro Como as Democracias Morrem, que por estes dias está em destaque em todas as livrarias brasileiras. “Personalidades míticas têm demasiado poder. E isso abre caminho a que os cidadãos aceitem que o Presidente governe fora da legalidade, dando-lhe mais poder”, disse o investigador norte-americano ao portal de notícias brasileiro UOL.
“Quando os cientistas políticos falam de democracia, referem-se à democracia liberal, o que não significa apenas a realização de eleições e a vontade da maioria, mas também restrições institucionais. Isto significa que o Presidente não pode governar como um ditador e assegura a protecção de direitos humanos e civis. Mas este entendimento não é partilhado por todos”, sublinhou o cientista político norte-americano.
Bolsonaro claramente não partilha esta definição, quando promete acabar a actividade dos movimentos sociais e os “coitadismos” quando identifica inimigos – “esquerdistas, petistas e bandidos”, que promete prender, matar, destruir, apesar de serem brasileiros como ele.
Mas é um regresso aos tempos da ditadura militar que se deve temer quando um Presidente de extrema-direita é eleito no Brasil?
Inspirações
Os tempos mudaram. A imposição de um projecto autoritário no Brasil pode tomar outros rumos, diz numa análise publicada no El País Brasil o sociólogo espanhol Ignacio Cano, do Laboratório de Análise da Violência da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Pode seguir os passos de Recep Erdogan na Turquia, de Rodrigo Duterte nas Filipinas ou de Donald Trump nos EUA.
“O Governo Bolsonaro apresentará muitas semelhanças com o Governo Trump”, previu Ignacio Cano. “Será provavelmente um governo autoritário, nacionalista, de espectáculo, estruturado a partir de um pequeno grupo familiar, movido a impulsos pessoais e meias verdades, dado a atritos internos, disfuncional, agressivo nas formas e hostil em relação às obrigações internacionais, aos direitos humanos e ao ambiente.”
A agenda política de Jair Bolsonaro será muito favorável às grandes empresas e aos mercados, mas é duvidoso que mantenha um alto nível de popularidade, mesmo nos primeiros tempos, preconizou Ian Bremmer, presidente da consultora de risco Eurasia Group e especialista em mercados emergentes, num artigo do UOL. “A comparação entre Trump e Bolsonaro também funciona se levarmos em conta que a falta de experiência levará a decisões não ortodoxas e a muitos erros”, avaliou.
Bolsonaro fez-se eleger com o poder das redes sociais. Quase não teve acesso à televisão no período de campanha e não andou pelas ruas nesse período, devido ao ataque que sofreu, e não participou em debates. Por isso, é de esperar que quando chegar ao Palácio do Planalto – toma posse a 1 de Janeiro – continue a privilegiar a Internet, tal como faz Trump com o Twitter, frisa Maurício Moura, da consultora Idea Big Data, em entrevista ao El País Brasil.
“Teremos um Presidente a falar directamente com os utilizadores de redes sociais. Sem passar pela imprensa ou pelos mecanismos tradicionais. Isso já ocorre com o Presidente Trump e vai estrear no Brasil com Bolsonaro”, disse.
Golpes já não se usam
O risco deste Presidente sem filtros não é que ocorra uma quebra brusca da democracia, defende Fernando Bizarro, cientista político brasileiro da Universidade de Harvard, parte da equipa do projecto V-Dem, que estuda a qualidade das democracias no mundo. “Aí o risco é provavelmente zero”, afirma, num artigo na Folha de São Paulo.
“Em democracias que sobreviveram por 21 anos ou mais, a probabilidade de golpe é efectivamente zero. Além disso, golpes caíram em desuso, sendo cada vez mais raros. A história mostra que mesmo em condições mais favoráveis ao autoritarismo – como 1964 [ano do golpe militar] –, o fechamento completo do sistema político brasileiro foi difícil”, escreveu.
O maior risco é o da erosão da democracia, defende Bizarro. Aliás, o mais recente relatório do projecto V-Dem mostra que a qualidade da democracia brasileira – como de muitas outras democracias, aliás – se tem vindo a degradar, sobretudo nos últimos dois anos, após o processo de afastamento do cargo da Presidente Dilma Rousseff, do Partido dos Trabalhadores (PT), e a sua substituição por Michel Temer, ele próprio acusado de corrupção. As eleições deste domingo, e as transformações que estão a acontecer no sistema político brasileiro, são ainda consequência do processo de impeachment e da Lava-Jato, a grande investigação à corrupção que liga empresas e financiamento de partidos.
“Dos 111 indicadores de democracia recolhidos pelo projecto V-Dem, 27 (24%) estão significativamente piores no Brasil hoje do que no final de 2015”, diz o cientista político. “A erosão democrática, isto é, a deterioração gradativa e limitada de algumas dimensões da democracia, é hoje a forma mais comum de degeneração das democracias”, afirma Fernando Bizarro.
A autocracia estabelecida no Peru nos anos 1990 por Alberto Fujimori é exemplo de algo semelhante ao que pode acontecer no Brasil agora: “Uma combinação de crises económicas e políticas abriram as portas para outsiders de natureza autoritária.”
Alguns analistas acreditam, porém, que as instituições brasileiras são suficientemente robustas para travar uma eventual deriva autoritária. “As instituições brasileiras são muito sólidas. Meu receio não é que o Presidente possa diminuir o poder das instituições de controlo – como o poder judiciário, o Ministério Público, os tribunais de contas, a imprensa livre e independente. Meu receio é a reacção da sociedade ao perceber que o Governo possa atentar contra essas instituições”, disse Carlos Pereira, da Fundação Getúlio Vargas, à revista Época.
Retórica de direita
Fernando Schilller, do Insper (Instituto de Ensino e Pesquisa), de São Paulo, acredita que as declarações de Bolsonaro que fazem temer pela democracia – como a promessa de uma “faxina” contra os “marginais vermelhos”, “uma limpeza nunca vista na história do Brasil” – são essencialmente retórica. “Quando Lula vai ao New York Times e diz que não existe democracia no Brasil, que está em curso um golpe de Estado, que não reconhece a Justiça, também desafia as instituições. Mas habituámo-nos com esta retórica de esquerda. E não estamos habituados com a retórica da direita”, disse Schiller à BBC Brasil.
Fernando Bizarro, no entanto, frisa que as instituições brasileiras não se têm revelado assim tão resistentes. “É inegável que as instituições são comparativamente robustas, mas claramente não são capazes de proteger a democracia”, como se vê pela queda do Brasil nos índices de mediação da qualidade da sua democracia. Os eleitores de Bolsonaro são sistematicamente mais autoritários do que os do PT e do que os que têm sentimentos negativos em relação ao partido de Lula, frisa.
Além disso, ao contrário do que os próprios brasileiros repetem para si próprios – tendo como alvo sobretudo a governação do PT –, o estudo que os investigadores Ezequiel Gonzalez-Ocantes e Nara Pavão estão a fazer, e cujos resultados preliminares relatam no El País Brasil, aponta para que não seja verdade que a Lava-Jato tenha mudado tudo na relação dos brasileiros com a corrupção.
Recolhendo dados de várias fontes, os cientistas concluem que “a tolerância à corrupção parece ter-se mantido constante no Brasil, tanto ao longo do tempo, como em referência a outros países da América do Sul”. Por isso, “a Lava-Jato não alterou de forma virtuosa a opinião dos brasileiros sobre a corrupção e a política”, dizem. Mas aprofundou a aversão à política tradicional e a “afinidade de grande parte dos brasileiros a discursos populistas e anti-sistema”, com forte preferência por um político caracterizado como “um outsider com um discurso combativo e antipolítica”.
O palco foi montado para uma estrela, e essa estrela era Jair Bolsonaro. Resta saber qual o argumento do filme que tem preparado.