O princípio do fim das novas regras orçamentais europeias
Como o OE2019 pode contribuir para regras orçamentais mais sensatas na Zona Euro.
Com a saída da França do Procedimento por Défices Excessivos, em Maio de 2018, ao fim de nove anos, poder-se-ia julgar que as regras orçamentais europeias funcionaram. Todos os países membros da Zona Euro apresentam um défice público inferior a 3% do PIB pela primeira vez em 2018.
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Com a saída da França do Procedimento por Défices Excessivos, em Maio de 2018, ao fim de nove anos, poder-se-ia julgar que as regras orçamentais europeias funcionaram. Todos os países membros da Zona Euro apresentam um défice público inferior a 3% do PIB pela primeira vez em 2018.
De facto, somente dois países da União Europeia, Hungria e Roménia (as regras orçamentais não se aplicam ao Reino Unido), estão sujeitos ao Procedimento por Desvio Significativo, regra orçamental “preventiva” da União Europeia que procura evitar que os países membros registem défices excessivos e passem a estar sujeitos a um Procedimento por Défice Excessivo.
No entanto, a sobrevivência dessas regras orçamentais parece estar finalmente em risco.
As regras orçamentais da Zona Euro chumbaram no teste do tempo
As regras orçamentais europeias, consagradas no Tratado Europeu, eram as “velhinhas” e arbitrárias, bem nossas conhecidas: défice público de 3% do PIB e dívida pública de 60% do PIB.
A crise do euro, entre final de 2009 e início de 2012, levou as autoridades europeias, dir-se-ia, em desespero de causa, a desenhar e a aprovar, entre 2011 e 2013, regras orçamentais muito mais restritivas, em que se destacam o “Six-Pack”, o “Two-Pack” e o Tratado Orçamental (ou Pacto Orçamental Europeu).
De forma simplificada, quatro novos objectivos orçamentais, específicos para cada país membro, foram introduzidos, mantendo no entanto os anteriores: o saldo orçamental estrutural não pode ser inferior a -0,5% do PIB (ou -1% do PIB se a dívida for inferior a 60% do PIB); a dívida pública acima de 60% do PIB tem de ser reduzida, em média, em 1/20 avos por ano; o saldo orçamental estrutural tem que convergir, a uma taxa suficientemente rápida, para um saldo orçamental estrutural de médio prazo (MTO), fixado periodicamente pela Comissão Europeia (no caso português, foi fixado em +0,25% do PIB); e a despesa pública primária “líquida” (de medidas de receitas e outros factores) deve crescer a taxas nominais inferiores a uma taxa que depende da taxa de crescimento potencial de longo prazo do país calculada pela Comissão Europeia e da diferença entre o saldo orçamental estrutural presente e o MTO (fixado para cada país).
As novas regras orçamentais europeias traduzem-se em objectivos de consolidação orçamental não só progressivamente mais exigentes, mas objectivos que também diferem consoante a situação orçamental de cada país e, por isso, implicam diferenças de tratamento profundas entre (cidadãos de) países membros, no que se afigura constituir uma perversão do princípio de tratamento igual perante a lei.
É devido a essas novas regras que a Itália vê rejeitada uma proposta de Orçamento para 2019 que prevê um défice de 2,4% do PIB enquanto o mesmo não acontece à França, que prevê um défice de 2,8% do PIB para 2019, situação que se afigura politicamente insustentável.
Outros países também arriscam incumprimento dessas regras orçamentais. Mesmo a Alemanha, apesar de apresentar excedentes orçamentais recorrentes e elevados (de +48 mil milhões de euros em 2018, 1,4% do PIB), poderá, num futuro próximo, vir a não respeitar essas regras.
Emenda quase Constitucional para défice zero?
Na prática, as novas regras orçamentais da Zona Euro foram desenhadas para constituir uma “quase emenda Constitucional” europeia que obriga a excedentes orçamentais recorrentes.
O colete-de-forças é tal que a violação das regras se tornou muito mais provável do que antigamente, porque existem agora seis regras orçamentais mais complexas quando antes existiam apenas duas e porque os novos objectivos de consolidação orçamental são muito mais draconianos e, pior, diferem entre países.
Ou seja, a Itália é apenas mais um país a “chocar” contra as novas regras. A França, já em 2016, não as tinha observado mas, na altura, não foram aplicadas sanções porque, como tão directamente referiu o presidente da Comissão Europeia, “a França é a França”.
As regras orçamentais de 2010-2013 devem ser interpretadas, por conseguinte, como uma tentativa improvisada das autoridades europeias para procurar salvar o euro, através da adopção de uma política orçamental muito mais restritiva do que a consagrada no Tratado Europeu.
Por cá, a ver como o Governo lida com o Procedimento por Desvio Significativo
Como se tinha aqui previsto, o Governo português recebeu em 19 de Outubro uma carta da Comissão Europeia a informar que o Orçamento de 2019 não cumpre, de forma significativa, uma das quatro regras orçamentais europeias e, não tão significativamente, outra dessas quatro regras.
O desvio na regra do crescimento da despesa pública primária “líquida” (de medidas de receitas e outros factores) em 2017 foi 0,5% do PIB e o desvio máximo permitido é de 0,5% do PIB em dois anos consecutivos.
Em relação à execução de 2017, o país escapou à justa do Procedimento por Desvio Significativo, porque a Comissão estimou que o desvio da despesa pública primária “líquida” seria precisamente de 0,5% do PIB.
Em relação à proposta de Orçamento do Estado de 2018, a Comissão Europeia estimou que a despesa primária “líquida” cresceria novamente acima da taxa recomendada de 0,1% por ano, em termos nominais, representando um desvio de 1,1% do PIB.
E, agora, com base na proposta de Orçamento do Estado de 2019, a despesa pública teria de crescer apenas 0,7% em 2019, em termos nominais, mas cresce 2,8%.
Ou seja, de acordo com as regras do Vade Mecum da Comissão Europeia, o Procedimento por Desvio Significativo contra Portugal parece já inevitável.
Um caso de estatísticas chinesas?
A crítica da UTAO à proposta do Orçamento do Estado de 2019 (OE2019) é uma crítica à transparência do mesmo, mas também a uma prática recorrente de sucessivos governos de incluir uma margem para evitar a necessidade de orçamentos rectificativos. Note-se que existem ainda outros instrumentos no OE para acautelar essa necessidade, nomeadamente cativações e dotação provisional.
Na realidade, o OE2019 apresenta dois orçamentos, um em contabilidade pública, a vigente em termos legais em Portugal, com um défice de 0,5% do PIB para “deputado ver”. Um segundo, em contabilidade nacional, para “europeu ver”, com um défice de 0,2% do PIB. Contudo, nenhum deles irá corresponder à realidade porque nem um nem outro considera o bom desempenho orçamental de 2018 nem a prudência adoptada pelo actual Governo na elaboração tanto do OE2018 como do OE2019.
De facto, o OE2019 será o quarto orçamento consecutivo deste Governo que erra por desvio favorável, apresentando um défice orçamental inferior ao previsto na respectiva proposta de OE.
O Orçamento do Estado é um documento anual fundamental à política económica e social do país. É, por isso, fundamental que seja transparente e reflicta de forma mais aproximada possível a real execução orçamental.
OE2019 deveria apresentar saldo orçamental positivo
A Assembleia da República deveria, por isso, alterar a proposta do Orçamento do Estado de 2019, incorporando os dados mais recentes sobre a evolução das receitas e das despesas públicas em 2018, revendo os valores do saldo orçamental de 2018 e de 2019, o que permitiria colocar, por certo, pelo menos um +0,1% do PIB no saldo orçamental das Administrações Públicas de 2019.
A Comissão Europeia seria então forçada a recomendar ao Conselho da União Europeia a abertura de um Procedimento por Desvio Significativo contra Portugal, com o país a cumprir todas as restantes regras orçamentais: apresentar um saldo orçamental positivo (+0,1% do PIB), redução de dívida pública acima de 60% do PIB em mais de 1/20 avos, e melhoria do saldo estrutural dos tais 0,6% do PIB.
Pode ser que, nessa situação, o Conselho da União Europeia encontrasse força para votar, por maioria “qualificada” de 73,91%, contra a recomendação da Comissão Europeia, rejeitando-a.
Portugal estaria, desse modo, a contribuir para regras orçamentais mais sensatas na Zona Euro.