As democracias desenvolvidas culpam os imigrantes para não terem de enfrentar os seus problemas

260 milhões de seres humanos estão em movimento no mundo. Fogem da pobreza, dos desastres, dos conflitos, da falta de esperança. O português António Vitorino tem uma parte da responsabilidade pelas suas vidas. Começou agora a sua “terceira vida” à frente da Organização Internacional para as Migrações. Quando os países mais ricos caem na tentação da fortaleza.

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Tomou posse do cargo no dia 1 de Outubro, depois de ter sido eleito três meses antes para liderar a Organização Internacional para as Migrações (OIM). Venceu o candidato dos EUA que, à excepção de um mandato nos anos 1960, sempre liderou a organização desde a sua fundação, em 1951. Foi até hoje uma figura de referência na vida política portuguesa, pelos cargos que ocupou, sempre com brilhantismo, mas também pela sua intervenção pública. É uma das vozes mais reconhecidas quando o debate é sobre a Europa. Em Bruxelas, o seu conselho foi tão apreciado como em Lisboa. O seu currículo é vastíssimo. Na Assembleia da República, para a qual foi eleito com 23 anos; nos governos socialistas; no Tribunal Constitucional; na Comissão Europeia. Nas listas com que anualmente o Financial Times classificava na altura os comissários europeus, esteve sempre nos três primeiros lugares, alternando com o britânico Chris Patten e o italiano Mario Monti.

Afastou-se do exercício de cargos políticos em 1997, quando uma questão sobre o extinto imposto de sisa de uma ruína que comprou no Alentejo se transformou em notícia. Quando essa informação veio a público, António Vitorino já tinha entregado o seu pedido de demissão a António Guterres. Podia ter sido líder do PS depois da desistência de Ferro Rodrigues em 2004, mas não quis. Talvez possamos dizer que, até hoje, já teve três vidas: como político, cá e em Bruxelas; como advogado de um dos maiores escritórios da Península Ibérica, ainda que dividindo o seu tempo com os cargos que desempenhou em vários think-tanks europeus, cumprindo uma segunda vida; inicia agora uma terceira, num alto cargo internacional. Afasta-se voluntariamente do debate europeu e nacional, para abraçar uma causa que envolve 260 milhões de pessoas. Já não fala, por isso mesmo, com a mesma liberdade e a mesma contundência sobre o futuro da Europa, nestes dias em que a Europa teme pelo seu futuro. Mas ainda fala.

Aos 61 anos, com quatro filhos e duas netas, vai ter de percorrer o mundo para chamar a atenção para aqueles que as guerras, a pobreza, as alterações climáticas, as catástrofes põem em movimento à procura de um porto seguro. Numa altura em que o mundo desenvolvido nunca pareceu tão fechado sobre si próprio. Segue-se uma entrevista em forma de conversa que decorreu na semana passada em Lisboa.

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Por que razão decidiu, de repente, mudar de vida?
A minha dedicação ao tema é antiga. Tem quase 30 anos. E, neste momento, verificando-se a eleição para a direcção-geral da OIM, decidi avançar. Já tinha havido algumas pressões há uma década, mas na altura decidi que não era o momento.

Em 2008?
Sim. Saí da Comissão em 2004. Houve algumas pressões para me candidatar, mas nessa altura achei que não era o momento para dar esse passo. Desta vez, essas pressões reeditaram-se e achei que talvez… Não quero que isto soe muito presunçoso, mas achei que tinha uma obrigação de dar um contributo neste sector, depois de todo o investimento que tinha feito nele ao longo de muitos anos.

E, por sinal, um sector que adquiriu hoje uma importância enorme à escala mundial e também na própria União Europeia. O mundo está numa situação de crescente caos e isso empurra as pessoas para os grandes movimentos migratórios?
Quando me comecei a dedicar a este tema, confesso que sempre achei que esta hora ia chegar. E se alguma razão de amargura tenho, ela deve-se a que muito daquilo que se poderia e devia ter feito para que enfrentássemos este momento em melhores condições não foi feito. Mas agora o tema impõe-se em todos os quadrantes. Dois terços dos países do mundo passaram a ser, simultaneamente, países de origem e países de destino de migrações. A dimensão dos fluxos migratórios sul-sul supera a dimensão dos fluxos migratórios sul-norte, embora nós, que lemos sobretudo a imprensa ocidental, tenhamos uma visão completamente desfocada.

Ia perguntar-lhe, justamente, se a grande pressão migratória continuava a ser essencialmente sul-norte — dos mais pobres para os mais ricos.
Hoje é menos. Temos, hoje em dia, cerca de 260 milhões de pessoas que podem ser consideradas em movimento, das quais cerca de 40 milhões são uma categoria mais recente mas em crescimento — as pessoas internamente deslocadas. “Internal desplaced people”, na versão oficial.

Que também são da sua responsabilidade?
É uma boa pergunta. Nós actuamos juntamente com o ACNUR (Alto-Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados) junto dessas pessoas, mas a clarificação da responsabilidade ainda carece de novos passos. Há, no entanto, uma coisa que é óbvia: essas pessoas têm necessidade de apoio. E nós, juntamente com o ACNUR, estamos no terreno. Voltando aos números, temos ainda cerca de 30 milhões de refugiados e, depois, os restantes são aquilo a que poderíamos chamar “migrantes económicos”.

Nas missões atribuídas à OIM, também se fala de apoio aos refugiados, o que aparentemente seria uma missão do ACNUR.
A responsabilidade dos refugiados é do ACNUR para a aplicação da Convenção de Genebra de 1951, que está intimamente ligada às causas pelas quais as pessoas carecem de protecção internacional. E essas são as causas que estão previstas na Convenção e a sua aplicação é da responsabilidade do ACNUR — quer o estatuto de refugiado quer as formas de protecção subsidiária. Mas o que é facto é que estamos cada vez mais confrontados com aquilo a que chamamos, no nosso jargão, “fluxos mistos”. Em muitos sítios do mundo, sobretudo nas zonas mais afectadas por conflitos, por alterações climáticas ou por situações de insegurança e de guerra civil, actuamos conjuntamente com o ACNUR, dentro de cada um dos respectivos mandatos, mas sobre um conjunto de pessoas que, no final, tanto podem ser refugiados como imigrantes.

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Migrantes que fazem parte da caravana de milhares de pessoas que partiram na semana passada das Honduras a pé, rumo aos EUA. Passagem pela localidade mexicana de Pijijiapan Ueslei Marcelino/Reuters

Apesar de tudo, posso dizer que esta é a sua terceira encarnação. Teve uma vida política, que começou muito cedo e que foi muito activa. Lembro-me de o ver na Assembleia da República, eleito pela UEDS…
Sim, comecei em 1980 com a eleição para deputado da UEDS nas listas da Frente Republicana e Socialista.

Passou pelo governo. Começou pelo governo do Bloco Central, em 1983, como secretário de Estado. Foi ministro. Fez as revisões constitucionais de 1982, 1989 e 1997. Podia ter sido líder do PS e, mais tarde ou mais cedo, primeiro-ministro. A determinada altura, quando sai de ministro da Defesa, percebe que a política lhe exige mais do que aquilo que está disposto a dar, pelo menos em termos pessoais?
Passaram dois anos entre o momento em que saí de ministro da Defesa (1997) e o momento em que fui designado comissário europeu (1999). Estive fora do governo, não exerci nenhum cargo político e retomei uma actividade internacional até 2004 na Comissão. Depois, ainda fui deputado nos anos de 2005 e 2006, o que, no todo, perfaz praticamente 28 anos de dedicação à vida política.

Uma vida…
Estive 13 anos no exercício da actividade privada e, como lhe disse há pouco, achei que tinha chegado o momento de voltar ao serviço público, neste caso, ao serviço público internacional, numa área onde adquiri uma grande experiência, nomeadamente quando estive na Comissão Europeia.

Mas a minha pergunta era ligeiramente diferente. Nessa altura e hoje, numa dimensão gigantesca, exige-se a quem exerce funções políticas uma enorme capacidade de resistência e uma disposição para sofrer ataques pessoais. É um preço que muita gente não está disposta a pagar. Essa questão pôs-se-lhe quando saiu do Governo?
Sim. E, como disse, as condições em que se faz política hoje são muito diferentes das condições em que se fazia política nos finais dos anos 90. Digamos que hoje estamos confrontados com duas evoluções que alteram as regras do jogo. A primeira é a emergência das redes sociais, que altera a própria lógica do debate político e que está intimamente associada a um outro fenómeno, que é a polarização das sociedades, seja do ponto de vista social, seja do ponto de vista político. Em parte, esta polarização está ligada ao crescimento das desigualdades sociais e, também em parte, ao facto de o debate político estar muito reduzido aos 140 caracteres de um tweet. Esta dupla evolução, polarização e pretensa simplificação da mensagem política, altera completamente o quadro de fundo. E também tem implicações pessoais. O grau de exposição individual e a necessidade de resiliência psicológica e emotiva aumentam muito.

E há pessoas que não estão dispostas a esta nova realidade?
Há pessoas que não aceitam as regras do jogo.

Ainda não sabemos quais vão ser as implicações das redes sociais no próprio funcionamento das democracias. Bolsonaro não tinha tempos de antena nem um grande partido e vai vencer graças às redes sociais. Isto altera profundamente o quadro de funcionamento das democracias? Mesmo das mais maduras como as europeias?
Sabemos que altera. Mas ainda não sabemos todas as implicações que estas novas condições de fazer política vão ter sobre a sobrevivência da própria democracia. Apenas uma coisa é certa: a democracia representativa como a conhecemos no passado não vai ficar incólume a estas transformações. Há riscos sérios. Mas também confio em que a sociedade, no seu conjunto, seja capaz de encontrar as respostas. Há uma certeza que tenho: não é possível resolver problemas complexos na base de ideias simplificadas. As ideias podem ser simples mas não podem ser simplistas. Isso é particularmente verdade nas migrações, onde o debate é, tantas vezes, dominado por ideias feitas, apriorísticas, por estigmatizações…

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Por exemplo?
Por exemplo, a ideia de que as migrações são uma invasão, que põem em causa a identidade dos países de acolhimento, quando temos, felizmente, casos de sucesso de sociedades abertas, tolerantes, onde o ajustamento e a convivialidade são garantidos por um esforço de duplo sentido — dos que chegam, para se adaptarem, e dos que os recebem, para se adaptarem à sua chegada. Esta ideia de invasão está muito ligada a fenómenos importantes, como seja o envelhecimento das sociedades mais ricas, a necessidade de rejuvenescimento das comunidades de destino para responder como maior agilidade e maior criatividade aos desafios de uma economia global mais competitiva e mais agressiva. Outro exemplo de ideias feitas: fazer dos imigrantes o “bode expiatório” responsável por uma série de males sociais que estão muito para além do fenómeno migratório. O declínio das sociedades desenvolvidas, a deslocalização dos processos produtivos, tudo isso é polarizado em torno dos imigrantes, que são estigmatizados, como se, resolvendo o problema da imigração, tudo se resolvesse. É uma forma de fugir aos problemas sérios que as sociedades desenvolvidas enfrentam. Designadamente, o crescimento das desigualdades, o problema das qualificações, a sociedade dos dois terços numa economia do conhecimento, a maneira de as comunidades saberem tirar o melhor proveito das novas tecnologias, a rapidez da revolução tecnológica.

Ou seja, a velocidade das mudanças?
Dir-me-á que já estamos habituados à revolução tecnológica, mas a verdade é que, nos últimos cinco anos, assistimos a uma aceleração vertiginosa das transformações tecnológicas. Quando, há 20 anos, provavelmente, as grandes evoluções se mediam em termos de décadas, hoje grandes evoluções inesperadas, seja na medicina, seja nas comunicações, seja no funcionamento das sociedades, são vistas a dois, três anos. Esta enorme rapidez cria um sentimento de vertigem e de insegurança. E, muitas vezes, a tentação é culpar os migrantes, ou seja, os outros…

E não vê-los como uma forma de dar sangue novo às sociedades.
Não sou ingénuo. Sei que a integração, por vezes, é difícil e que exige políticas públicas e a mobilização da sociedade civil: e coloco as duas coisas ao mesmo nível. Sem a mobilização da sociedade civil, as políticas públicas são insuficientes. E é preciso ter consciência — que muitas vezes não existe — de que o sucesso ou insucesso da integração é micro. Joga-se no local de trabalho, no local e residência, nos serviços sociais de primeira linha, joga-se nas escolas, através da socialização dos filhos das famílias de imigrantes, e esse processo é sobretudo da responsabilidade das autarquias locais, dos responsáveis locais e das associações locais.

Tendemos a ter um discurso demasiado geral e demasiado teórico sobre estas questões?
Não há um fato que sirva a todos. Cada caso de integração é um desafio, é uma experiência, há coisas que resultam num sítio e que não resultam noutro. Temos de ter a humildade de aprender com a experiência.

Deixe-me só compreender melhor a OIM, que não é muito conhecida em Portugal. É uma organização do sistema das Nações Unidas, cujo core business é apoiar toda a gente que está em deslocação no mundo pelas mais variadas razões, dos refugiados aos imigrantes económicos. A pergunta clássica: tem meios e financiamento para a dimensão da tarefa?
A OIM é uma organização que emprega cerca de 12 mil pessoas, entre funcionários internacionais e contratados locais, em 150 países, tendo 473 delegações de dimensão variável no mundo inteiro. É uma organização intergovernamental que, desde 2016, tem um estatuto de associação às Nações Unidas, que vai ser agora reforçado quando os Estados da ONU adoptarem o Pacto Global para as Migrações Regulares, Seguras e Ordeiras, em Dezembro, em Marraquexe. Isso fará da OIM a agência coordenadora desse pacto no âmbito das Nações Unidas.

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António Vitorino: "Estou convencido de que não há solução para as migrações fora do contexto da cooperação internacional. Seja ela bilateral, seja ela regional ou global" Maria de la Luz Ascencio/EPA

E financiamento?
É uma organização com um orçamento anual variável, porque está muito ligado aos projectos, que anda à volta dos 1800 milhões de dólares. Dedica-se ao apoio a migrantes, quer seja assistência humanitária e sanitária, quer respondendo a pedidos dos Estados, garantindo a sua segurança e o retorno aos países de origem daqueles que voluntariamente aceitam regressar — ou porque não foram admitidos nos países de destino ou porque viram os seus pedidos de asilo rejeitados.

Também tem essa função: o retorno?
E a reintegração. É esta a segunda parte. Quando as pessoas regressam aos países de origem, é preciso criar condições para voltarem a integrar-se e terem forma de encontrar um modo de vida. Actuamos hoje com base em projectos que são financiados, sobretudo, pelos grandes países doadores — os EUA, a UE enquanto instituição e cada um dos seus Estados-membros, bem como vários outros países, o Japão, o Canadá —, fazendo, deste modo, a ponte entre os países doadores, que são normalmente os países de destino, e os países beneficiários, que são normalmente os países de origem e de trânsito.

É só financiada pelos Estados, não pela ONU?
Sim. É baseado em projectos e programas, o que faz com que a organização seja muito flexível, altamente descentralizada, tenha uma grande proximidade com os migrantes e seja capaz de produzir resultados. A estrutura central é financiada por uma percentagem sobre os projectos.

E os grandes doadores? São os do costume? Países nórdicos, Alemanha…
Sim. Alemanha, Suécia, Estados Unidos sem dúvida, Canadá… Hoje, as instituições europeias, sobretudo o Trust Fund e os fundos para a cooperação e o desenvolvimento, especialmente com África, são os grandes contribuintes.

O resto do mundo, para lá do mundo desenvolvido ocidental, dá alguma contribuição significativa? A China, por exemplo? Os países em desenvolvimento? Os emergentes?
Esses são ainda, em grande medida, beneficiários dos projectos.

Temos duas grandes fronteiras, das quais se fala muito, entre o mundo pobre e o mundo rico a fronteira dos EUA com o México e a fronteira do Mediterrâneo, entre a Europa e o Norte de África e o Médio Oriente. O que é que não vemos, para além destas duas fronteiras?
Não vemos as migrações intra-africanas. Embora os números sejam estimativas, porque nestas regiões não é possível haver um controlo rigoroso, 70%, no mínimo, dos movimentos em África são dentro do próprio continente. À escala global, mais de 45% dos movimentos migratórios são sul-sul, incluindo entre vários continentes. Encontramos, por exemplo, correntes migratórias na América Central oriundas de África.

Hoje, há nos países ricos a sensação de que a imigração não pára de crescer e que são eles o único destino.
É verdade. Nos países de destino, a percepção das opiniões públicas sobre o fenómeno migratório tende a ser muito exagerada. Na Europa, como provam os inquéritos, quando as pessoas são espontaneamente inquiridas sobre quantos imigrantes pensam que estão no seu país, em regra respondem que há duas, três, quatro ou até cinco vezes mais do que a realidade. Há aqui também uma tarefa de…

... desmistificar essa percepção…
De desmistificar essas percepções erróneas que, muitas vezes, são manipuladas — abusiva e intencionalmente manipuladas. É necessário desmentir as falsas notícias que, neste sector, são permanentes e não são tão recentes como noutros, são bastante mais antigas. E é necessário, sobretudo, ter a consciência de que as pessoas que têm uma percepção negativa sobre a imigração não são todas empedernidos racistas e xenófobos. Este ponto é muito importante. Seria um erro de análise gravíssimo. Obviamente que há racismo e xenofobia, mas não é aí que está a alavanca da reacção às migrações. A alavanca desta percepção negativa está nas inseguranças, nas incertezas, na falta de conhecimento e, por isso, uma das nossas tarefas é a de fazer a pedagogia junto dessas opiniões públicas.

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A sua experiência sobre o sector vem muito da Comissão?
Sim. Mas fui presidente da Comissão das Liberdades Públicas do Parlamento Europeu em 1994, quando fui eleito deputado, que era precisamente a comissão que se dedicava ao asilo e à imigração.

Em 1999, vai estrear uma nova pasta, da Justiça e dos Assuntos Internos. Teve de a formatar e houve nessa altura uma série de acontecimentos que levaram a que fosse rapidamente olhada como relevante. Lembro-me de um de que ninguém se esquece: o 11 de Setembro. Já nessa altura, a questão da imigração ilegal se colocava com uma grande persistência. A Europa não se preparou para ela. A responsabilidade também é sua?
[gargalhada] Mais uma vez, não quero soar presunçoso.

Não soa.
Muitos dos debates que estão hoje em cima da mesa são em torno de propostas e de ideias que lá coloquei em 2004. Dou-lhe exemplos. Propus a criação do Frontex em 2004, explicando que era um embrião que deveria evoluir no sentido de vir a ser uma guarda costeira. Passaram 17 anos. A ideia de que é preciso dar protecção aos refugiados e às pessoas à procura de asilo o mais próximo possível da zona de onde são originárias, porque me parece completamente hipócrita esperar que elas consigam chegar até nós para nós cumprirmos uma obrigação de protecção. Esta ideia está, de resto, em linha com o que o secretário-geral das Nações Unidas [António Guterres] tem sublinhado, insistindo na necessidade de proteger e de encontrar mecanismos de protecção tão depressa quanto possível junto das zonas de origem dos conflitos que geram refugiados. A ideia de protecção na região foi posta em cima da mesa por mim em 2002. Mesmo a ideia de uma cooperação mais estreita entre os países europeus e os países do Mediterrâneo para acolher as pessoas que podiam correr risco de vida na terrível travessia do Mediterrâneo…

E que morrem em larga escala.
Como vimos agora. A ideia foi posta em cima da mesa por mim em 2002. Não quero dizer: eu já sabia. Não é isso. O que quero dizer é que essas ideias não tiveram a sequência que deviam ter tido e agora fomos confrontados com uma nova realidade e estamos a reagir a ela em modo de crise.

Em modo de crise e sem grande capacidade de encontrar resposta eficazes e comuns. Andamos de Conselho Europeu em Conselho Europeu a colocar alguns remendos. Ainda não foram colocadas as 140 mil pessoas que há dois anos a Comissão queria distribuir pelos países da União.
Já foram alguns. Mas tenho de ser prudente nos comentários sobre estas matérias…

Porque os seus financiadores estão na Europa… [gargalhada]. Tem condições, na sua organização, humanas e financeiras, para enfrentar problemas desta dimensão?
A resposta é simples: tenho de as criar. Não estou à espera que mas dêem, tenho de ser eu a encontrá-las. Mas acho que, apesar de tudo, o simples facto de, pela primeira vez e no âmbito da ONU, haver uma conferência intergovernamental em Marraquexe, do Pacto Global sobre Migrações, incluindo pela primeira vez o tema na agenda das Nações Unidas, já é um bom sinal. Outro sinal positivo está em que a Agenda do Desenvolvimento Sustentável — a Agenda 20-30 — estabelece pela primeira vez a ligação entre migrações e desenvolvimento, coisa que não encontramos nos Objectivos do Milénio. A grande diferença entre ambos está precisamente nesta ligação, estabelecida explicitamente, entre migrações e desenvolvimento e na necessidade de olhar para as causas profundas que levam as pessoas a imigrar — ou forçam as pessoas a imigrar. Vejo isso como um sinal encorajador, que agora terá de ter sequência por parte da comunidade internacional.

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Toda a gente ouviu o Presidente Trump dizer, no seu discurso na ONU, que os EUA não iam participar no Pacto Global. Sendo eles o maior financiador da OIM, fica preocupado?
Eu respeito a decisão americana, é uma decisão soberana. Aliás, o Pacto Global é, ele próprio, um instrumento não vinculativo do ponto de vista jurídico e, portanto, apenas um quadro de referência política, ao qual os Estados aderem voluntariamente. Até ao momento, quer os EUA quer a Hungria já anunciaram publicamente que não vão participar. Mas eu gostaria de sublinhar — e sou enfático — que a OIM tem responsabilidade no âmbito do Pacto Global, mas não se resume, muito longe disso, ao Pacto Global.

É apenas uma nova dimensão?
Exacto. Isso em nada altera a relação da OIM com todos os Estados-membros, com base nos projectos que levamos a cabo, e trabalhamos intensamente com os EUA em todas as zonas do mundo — na América Central, na América Latina, em África e na própria Ásia. Temos com eles um conjunto vasto de programas e projectos e tenho sinceramente a convicção de que vão continuar, porque correspondem ao interesse nacional americano e são levados a cabo directamente pela OIM, independentemente do Pacto Global.

Um pequeno aparte sobre os EUA, que, seja em que dimensão for, são sempre incontornáveis. Reparou que a imprensa ocidental deu a notícia da sua escolha mais ou menos assim: “O português Vitorino venceu o candidato de Trump.”  A OIM não passa ao lado da política mundial. O mundo atingiu um estádio de desordem que, porventura, não imaginávamos há cinco anos e que é também atribuído às políticas de Trump. E isso terá impacte na sua vida.
Primeiro, a minha candidatura nunca foi uma candidatura contra ninguém. E, muito menos, contra os EUA, porque não me considero uma pessoa estúpida. Em segundo lugar, essa interpretação resulta do facto de, desde 1951, praticamente todos os directores-gerais serem americanos. Em terceiro lugar, a OIM tem tido uma colaboração muito estreita com os EUA e eu sempre assumi o compromisso, como candidato e agora como director-geral, de que não haverá qualquer alteração nessa relação por parte da OIM.

Mas a crescente desordem mundial torna a sua missão mais complexa.
Sim. A missão não é fácil. Isso já sabia antes de ser eleito. Mas estou convencido de que não há solução para as migrações fora do contexto da cooperação internacional. Seja ela bilateral, seja ela regional ou global. O que é preciso é que as respostas sejam flexíveis. Atribuímos muita importância à cooperação com a União Europeia mas também com a União Africana ou com todos os processos regionais em matéria migratória, seja o Processo de Cartum, seja o processo de Colombo ou de Bali. Há uma lista de processos intergovernamentais por zonas do mundo onde a OIM coopera, porque entendemos que todas essas plataformas são fundamentais. Não há soluções “one fits all”. Têm de ser muito adaptadas às realidades no terreno, que são mutáveis. Ninguém imagina como são flexíveis os fluxos migratórios. Falou do Mediterrâneo, que é um excelente exemplo. Hoje, a situação no Mediterrâneo oriental está estabilizada, embora haja ainda um conjunto de casos pendentes de apreciação nas ilhas gregas. Os números no Mediterrâneo central mostram uma quebra de 36% em relação ao mesmo período do ano passado e uma quebra de 76% em relação a 2016. Mas, infelizmente, o número de mortos continua a ser muito elevado. Estamos a assistir mais recentemente a um aumento da pressão migratória sobre a Europa no Mediterrâneo ocidental, sobretudo em direcção a Espanha. Os fluxos mudam com uma enorme rapidez. Estamos a falar numa mudança que ocorreu num período de três anos.

Tem um conjunto de prioridades ou pontos quentes?
Estamos presentes em situações de crise. Na Síria, obviamente. E em todo o arco à volta — Líbano, Jordânia, Turquia, onde estão acolhidos milhões de sírios. Temos situações muito difíceis no Iémen. Temos outras situações muito difíceis na África central, no Congo, na Somália, no Sahel. Temos agora a situação da Venezuela ou os rohingya no Bangladesh. São situações prioritárias onde estamos presentes com missões de grande dimensão. 

Temos diante dos nossos olhos essa impressionante caravana de hondurenhos a caminho dos Estados Unidos, que já chegaram ao México e que se dirigem para a fronteira, onde provavelmente não serão bem recebidos. Para estas pessoas, qualquer risco é melhor do que o que vivem nos seus países?
Trata-se de mais um dramático exemplo de migrações provocadas pelo desespero, que se traduzem rapidamente numa crise humanitária que exige uma resposta pronta e eficaz da comunidade internacional, em nome dos mais elementares direitos humanos. É o que estamos a fazer no terreno, ao mesmo tempo que tentamos perceber melhor os factores de incentivo para este movimento tão significativo — 7 mil pessoas em escassos dias, que percorrem a pé milhares de quilómetros em condições de grande penosidade e sofrimento.

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Migrantes hondurenhos à passagem pela localidade de Tapachula, México Maria de la Luz Ascencio/EPA