Como é que a direita vota em Haddad? Com açúcar, com afeto. Sem neutralidade
É a primeira vez em gerações que nos encontramos cara a cara com os fantasmas das ditaduras passadas.
Tenho amigos de direita. Sempre tive. E continuo a achar que confundir política com afetos pessoais é um caminho tortuoso. Por isso, e apesar de encarar a política como algo que diz muito mais sobre a nossa construção filosófica e identitária do que tantas outras coisas pelas quais nos chateamos, ou talvez por isso mesmo, nunca renunciei a nenhuma amizade por divergências políticas.
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Tenho amigos de direita. Sempre tive. E continuo a achar que confundir política com afetos pessoais é um caminho tortuoso. Por isso, e apesar de encarar a política como algo que diz muito mais sobre a nossa construção filosófica e identitária do que tantas outras coisas pelas quais nos chateamos, ou talvez por isso mesmo, nunca renunciei a nenhuma amizade por divergências políticas.
Tenho a certeza de que há uma multidão de pessoas que, apesar de pensarem como eu, nas últimas semanas cortaram relações com família e amigos por causa das eleições brasileiras. Essa é a dimensão da polarização que emergiu na hora de escolher entre dois candidatos: Fernando Haddad ou Jair Bolsonaro.
Para quem se habituou ao conforto da escolha política em campo aberto, esta é uma escolha disruptiva. Um é democrata, o outro defende abertamente o fascismo. É a primeira vez em gerações que nos encontramos cara a cara com os fantasmas das ditaduras passadas. E neste cenário é inevitável que os opositores de Bolsonaro se vejam a si próprios como as futuras vítimas da sua repressão, incapazes de sentir empatia por quem vai eleger o seu carrasco.
É mais fácil compreender o horror da eleição de um candidato racista, homofóbico e violento quando se é negro, gay e pobre do que quando se é branco e privilegiado. O medo é uma arma poderosa, e não há ativista de direitos humanos no Brasil que hoje não tema pela sua vida. Desvalorizar a ascensão de um monstro é luxo de quem se acha a salvo.
Mas ninguém está verdadeiramente a salvo. O campo da democracia no Brasil compreendeu isto. Sob o mote “viravoto”, milhares de brasileiros lançaram-se num último esforço para impedir a eleição de Bolsonaro. Foram para as ruas com bancas que oferecem brigadeiros a troco de uma conversa, café por dois minutos de “papo” com um indeciso, um abraço por um voto. O objetivo é mostrar que o ódio está do outro lado, que se alimenta da ignorância sobre os seus verdadeiros propósitos e, um a um, convencer eleitores de Bolsonaro ou indecisos a mudar o seu voto.
Eficaz ou não, a verdade é que sem esta tentativa a eleição estaria perdida e até as sondagens começaram a dar sinais de esperança. No fundo, quase toda a gente tem uma razão para rejeitar o obscurantismo, o problema é acreditar na alternativa.
A alternativa é Fernando Haddad, candidato do PT, partido de Lula da Silva. Ex-ministro da Educação, ex-prefeito de São Paulo, até hoje sem nota de envolvimento em corrupção. Para início de conversa, e por que estas coisas contam, direi que há muito que sou crítica do PT e até participei – a título individual – na campanha de outro candidato da esquerda brasileira, Guilherme Boulos.
Mas perante a pergunta “em quem votaria no Brasil” não hesito em responder “Haddad”. Como antes não hesitei em dizer “Macron”, mesmo prevendo que a médio prazo o seu projeto não seria capaz de conter o avanço da extrema-direita francesa. Macron está tanto nos meus antípodas políticos como o PT deve estar nos da direita democrática, mesmo considerando os elogios que sucessivos governos portugueses fizeram ao Governo Lula (e não esqueci que foi Paulo Portas e não Francisco Louçã quem recebeu das suas mãos uma condecoração).
Nós, democratas de esquerda e de direita, continuamos adversários. Nada apagará isso, nem quando estar do mesmo lado for a barragem necessária contra os novos fascismos.
O problema é que há quem, proclamando-se neutro, esteja disposto a sacrificar tudo, e até vidas, para não votar no PT. Este erro da direita brasileira (e europeia) que promete a vitória a Bolsonaro usa a corrupção como pretexto, mas já aplaudiu corruptos como Michel Temer. É herança do golpe. Bolsonaro afirmou-se como representante do campo que apoiou a destituição de Dilma Rousseff, e a verdade é que não foi rejeitado pelos seus organizadores.
O equívoco de muitos, como Assunção Cristas, é confundir os campos que se formaram no pós-golpe com os desta segunda volta. As fronteiras anteriores deveriam ter-se esfumado no momento em que um dos candidatos afirmou querer “fuzilar essa petelhada toda [1]”. Não vale a pena fazer apostas sobre se o fará ou não, muitos em seu nome já sentem legitimidade para atacar arbitrariamente nas ruas. O fascismo não é obra de um louco, mas da legitimação da sua loucura. Será que o mal está feito?
Domingo há eleições no Brasil. Um é democrata e o outro é fascista. Isso deveria ser suficiente para motivar a formação de um campo democrático sem medo de contaminações políticas. Esse projeto falhou, mas ainda temos o mano a mano do “viravoto”. Se para isso for preciso confundir afetos com política, que seja. O que vem a seguir pode muito bem ser a repressão de ambos.
A pergunta que importa hoje é: o que distingue um opositor de Haddad de um apoiante de Bolsonaro? A convicção de que a política se faz em campo aberto, e de que a única forma de um dia ter a chance de ganhar eleições ao PT é amanhã ainda ser dia, ainda em democracia. Não há neutralidade contra o fascismo.
[1] Por “petelhada” deve entender-se militantes do PT, homossexuais, transexuais, opositores políticos, ambientalistas, índios, favelados e pessoas de quem ele não goste em geral
A autora escreve segundo o novo Acordo Ortográfico