Caio Martins, o estádio-prisão da ditadura
Nos primeiros meses que se seguiram após o golpe militar de 1964 no Brasil, cerca de 1200 pessoas estiveram presas num campo de futebol em Niterói, no estado do Rio de Janeiro.
Caio Martins era um escuteiro de 15 anos que, em 1938, recusou assistência nos escombros de um acidente ferroviário para que outros feridos fossem ajudados. Caio acabaria por morrer em consequência dos ferimentos sofridos no acidente, mas o seu altruísmo teve eco por todo o Brasil. Uma das homenagens que lhe fizeram foi dar o seu nome a um estádio de futebol em Niterói, município do Estado do Rio de Janeiro, erguido em 1941 para receber jogos do campeonato carioca. O que começou como um pequeno estádio foi crescendo em capacidade e funcionalidades, com bancadas de 12 mil lugares, uma pista de atletismo e um ginásio. Mas, durante alguns meses em 1964, o estádio com o nome do escuteiro foi utilizado para algo que nada teve a ver com desporto. Nos primeiros tempos da ditadura militar, foi um campo de concentração onde estiveram detidos mais de 1000 pessoas.
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Caio Martins era um escuteiro de 15 anos que, em 1938, recusou assistência nos escombros de um acidente ferroviário para que outros feridos fossem ajudados. Caio acabaria por morrer em consequência dos ferimentos sofridos no acidente, mas o seu altruísmo teve eco por todo o Brasil. Uma das homenagens que lhe fizeram foi dar o seu nome a um estádio de futebol em Niterói, município do Estado do Rio de Janeiro, erguido em 1941 para receber jogos do campeonato carioca. O que começou como um pequeno estádio foi crescendo em capacidade e funcionalidades, com bancadas de 12 mil lugares, uma pista de atletismo e um ginásio. Mas, durante alguns meses em 1964, o estádio com o nome do escuteiro foi utilizado para algo que nada teve a ver com desporto. Nos primeiros tempos da ditadura militar, foi um campo de concentração onde estiveram detidos mais de 1000 pessoas.
Após o golpe que depôs o governo de João Goulart, os primeiros tempos foram de perseguição intensa aos que eram vistos como inimigos do novo regime. As detenções em massa faziam com que os presídios não tivessem espaço para todos os detidos e muitos locais alternativos foram utilizados com esta função. Os recintos desportivos foram uma dessas soluções alternativas e o estádio Caio Martins serviu para receber os detidos que não tinham lugar nas prisões de Niterói. Entre Abril e Julho de 1964 estima-se que tenham passado pelo Caio Martins certa de 1200 presos políticos, embora outras fontes falem em 1800. Os presos dormiam nas bancadas do ginásio e, uma vez por dia, tinha permissão para ir ao relvado apanhar sol, sob vigilância armada nas bancadas.
Um dos detidos foi Manoel Martins, um advogado da cidade que, várias décadas depois do sucedido, se tornou numa das principais testemunhas do que se passou no estádio-prisão, depondo na Comissão Nacional da Verdade (CNV), uma comissão constituída pelo governo brasileiro em 2011 para investigar violações dos direitos humanos. “O Caio Martins foi o terror implantado. Éramos professores, operários e camponeses, muitos evangélicos. As pessoas chegavam em camiões”, recordou o advogado na CNV em 2012. Também lá iam parar jornalistas, engenheiros, um antigo deputado, um prefeito, funcionários bancários, dentistas e até um cobrador de “bonde”.
Lendo os testemunhos desses prisioneiros nos relatórios finais da CNV, percebe-se que o Caio Martins não era o principal centro de tortura para os detidos em Niterói, mas estes eram tratados de forma desumana. Manoel Martins contou numa entrevista ao site Trivela que houve várias tentativas de suicídio nos meses em que o recinto funcionou como prisão e que muitas vezes a comida dada aos prisioneiros estava estragada e provocava congestionamentos nas casas-de-banho. “Não podíamos fechar o banheiro. Tínhamos de ocupar o vaso sanitário de porta aberta, com o soldado de fuzil apontado para a nossa cabeça”, contou na CNV Benedito Joaquim dos Santos, que foi detido por ser líder sindical.
O Caio Martins funcionou como prisão durante alguns meses e, já em democracia, passou a ser administrado pelo Botafogo, um dos “grandes” do futebol do Rio de Janeiro, que já o utilizou para jogos da equipa principal, mas que agora serve, sobretudo, como campo de treinos. Ficou para a história como o primeiro estádio de futebol da América Latina a ser utilizado como prisão. De todos os casos registados, o mais famoso é o do Estádio Nacional de Santiago, no Chile, utilizado como campo de concentração e de tortura nos primeiros tempos após o golpe de estado de Augusto Pinochet em 1973 que afastou o Governo eleito de Salvador Allende.
O golpe de Pinochet aconteceu a meio da campanha de qualificação para o Mundial 1974, com uma das vagas a ser disputada entre o Chile e a União Soviética. Os soviéticos recusaram-se a jogar no Estádio de Santiago, apesar das garantias da FIFA, que tinha feito uma vistoria ao recinto sem terem encontrado sinais de que era utilizado como prisão. Mesmo sem adversário, o Chile subiu ao relvado, marcou um golo numa baliza sem guarda-redes e qualificou-se.