Brasil: virada histórica ou a arte de engolir elefantes
A virada histórica é possível. Mesmo que alguns tenham de engolir um elefante vivo, a digestão será muito mais fácil.
Paira sobre o Brasil uma nuvem negra. Os fantasmas da barbárie, que já no passado o subjugaram, estão de novo à solta. Em São Paulo tenho ouvido, com angústia, relatos de agressões, intimidações e violência verbal por parte dos apoiantes de Bolsonaro. Como noutros momentos trágicos da História, os intelectuais, alvo privilegiado da ira dos reacionários, são vistos como agentes de um espírito racional e crítico – os agentes do Mal – pelos que negam a Ciência e odeiam o ensino das humanidades. Acima de tudo, os alvos são os defensores dos direitos humanos.
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Paira sobre o Brasil uma nuvem negra. Os fantasmas da barbárie, que já no passado o subjugaram, estão de novo à solta. Em São Paulo tenho ouvido, com angústia, relatos de agressões, intimidações e violência verbal por parte dos apoiantes de Bolsonaro. Como noutros momentos trágicos da História, os intelectuais, alvo privilegiado da ira dos reacionários, são vistos como agentes de um espírito racional e crítico – os agentes do Mal – pelos que negam a Ciência e odeiam o ensino das humanidades. Acima de tudo, os alvos são os defensores dos direitos humanos.
Passei os últimos três dias em seminários em São Paulo, nos quais tive a oportunidade de debater com intelectuais, universitários, escritores, juristas, de vários quadrantes políticos do campo democrático, e o traço comum é uma enorme inquietação com o futuro da Democracia e do Estado de direito. Todavia, a inquietação é também pessoal: temem a violência dos “bolsonaristas”, que sejam concretizadas as ameaças que recebem nas redes sociais e que resultam de constarem nas listas de “nomes a perseguir” que circulam. Não são poucos os que temem acabar por ser forçados ao exílio. Estão receosos os membros da Comissão da Verdade, que denunciaram os crimes de tortura cometidos pelos adeptos de Bolsonaro. Temem a violência de um estado bolsonarista, mas já hoje a violência dos ”camisolas amarelas” qua fazem da cor da diversidade do Brasil uma cor monocromática, cinzenta, como pude constatar às portas do MASP. Aí, suprema ironia do destino, tinha ido ver uma bela exposição sobre a escravatura e a contribuição dos negros para a cultura do Brasil. Numerosos são os relatos de ataques contra os que vestem camisolas de outras cores, como aquele sobre quem cuspiram porque vestia uma camisola cor-de-rosa e um que levou uma pedrada na cabeça porque tinha uma camisola vermelha.
Depois de o filho ter ameaçado o Supremo Tribunal de Justiça, afirmando que bastavam dois soldados para o fechar, Bolsonaro prometeu “uma limpeza nunca vista na história desse Brasil” e, referindo-se aos apoiantes do PT – a quem chamou “marginais vermelhos” – disse “ou vão para fora ou vão para a cadeia”. Ainda assim há quem tenha dúvidas da natureza fascista de Bolsonaro e dos seus “camisolas amarelas”.
A batalha trava-se nas redes sociais. Constatei como os intelectuais com que falei estão sempre conectados, a postos para intervir na guerra da informação, esperançosos na virada eleitoral que impeça a tragédia. E os primeiros resultados dessa virada começaram, com Haddad a crescer nas sondagens, crescendo também a rejeição a Bolsonaro.
Alguns com quem falei justificam a sua esperança na virada eleitoral com o sucedido em Portugal em 1986. Nas eleições presidenciais desse ano, no fim da primeira volta, Freitas do Amaral, candidato da direita democrática, obteve 46,31% dos votos, e o socialista Mário Soares 25,43%. Na segunda volta, Mário Soares, contra todas as expetativas, venceu com 51,18% dos votos.
Para essa vitória contribuiu o facto de, perante o que consideravam um “mal maior”, muitos dos que tinham votado em outros candidatos terem votado em Mário Soares, apesar do capital de queixa que tinham acumulado. Ficou célebre o apelo feito por Álvaro Cunhal, líder do Partido Comunista, aos eleitores do seu partido para votarem em Mário Soares, que odiavam acima de tudo. Álvaro Cunhal acrescentou, referindo-se ao momento em que veriam a cara do “odiado” no boletim de voto: “Se for preciso, tapem a cara com uma mão e votem com a outra.” Mais do que um sapo, os comunistas estavam dispostos a engolir um elefante vivo para impedir a vitória do candidato da direita. Como eles, muitos outros que, tendo bem presente a memória da ditadura salazarista, não queriam eleger um candidato da direita. A promessa que receberam de Mário Soares foi a de que cumpriria a Constituição, defenderia a Democracia e o pluralismo político.
Ainda há democratas brasileiros, com elevado compromisso com os Direitos Humanos, que continuam a recusar-se a apelar ao voto em Haddad, que se recusam a engolir, como o fizeram os apoiantes de Álvaro Cunhal, um “elefante vivo”. Entre eles, Fernando Henrique Cardoso, mesmo que já tenha apelidado de fascismo a promessa de Bolsonaro de prender ou expulsar os opositores. Perante tal declaração, só lhe resta – e urge – apelar ao voto em Haddad.
Dizem alguns que a indicação de voto dessas personalidades não mudará nada. Não estou de acordo. A indicação confirmará que estão preocupados com os perigos que ameaçam a Constituição e a Democracia. Desconfio que esta preocupação é uma das razões da virada que já se começa a sentir.
Coordenador do livro Brasil nas Ondas do Mundo
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico