“Então não vamos poder matar os bandidos?” Três dias no submundo do WhatsApp brasileiro
A rede de troca de mensagens saltou para a ribalta da campanha eleitoral no Brasil pela quantidade de desinformação ali partilhada. Um autêntico caldeirão de informação, mentiras e preconceitos.
Durante três dias, o PÚBLICO acompanhou as conversas dentro de um grupo de apoio a Jair Bolsonaro e de outro favorável a Fernando Haddad no WhatsApp, a rede de troca de mensagens que ganhou protagonismo na campanha para a eleição do próximo Presidente brasileiro pelo que representa na proliferação da desinformação.
Diariamente, são partilhados nesta rede milhares de textos, áudios, vídeos, sons, notícias misturadas com informações falsas, comentários misturados com factos ou disfarçados de factos, excertos da Bíblia, citações, músicas, imagens com frases-chave pensadas para convencer os eleitores sobre os assuntos mais polémicos do momento.
Os dois grupos aos quais o PÚBLICO acedeu, através de uma pesquisa online em sites oficiais de apoio aos candidatos e links partilhados entre os apoiantes, são dois no universo de muitos milhares. Juntos reúnem cerca de 340 pessoas. O WhatsApp tem 120 milhões de utilizadores activos no Brasil.
Os soldados de Bolsonaro
“Bolso tarde a todos!”, “bolso tarde!”. O cumprimento é trocado num grupo de WhatsApp de apoio a Jair Bolsonaro. A imagem do grupo é o candidato com uma espingarda na mão ao lado das palavras: “Eu sou o mito.”
A conversa aqui é uma torrente que não tem horas mortas. O número de mensagens chega às mil por dia e vem tudo misturado. Levantam-se os fantasmas do comunismo e da Venezuela, erguem-se as bandeiras anticorrupção e a favor da família, e até o direito a ser de direita. Se Haddad ganhar, é porque há uma fraude eleitoral, os jornais estão comprados, dizem. Partilham-se orações e sondagens verdadeiras e falsas.
Por vezes, surgem conversas paralelas, desabafos, publicidade a negócios pessoais — de vez em quando, alguém lembra que vende serviços de assessoria na compra de armas, por exemplo.
O grupo junta cerca de 250 pessoas — há sempre alguém a entrar ou a sair — e a conversa é aberta a todos.
Lucas (usamos o primeiro nome dos utilizadores que aparece na conversa do WhatsApp) partilha uma playlist que inclui batidas para todos os gostos. Entre elas, um rap chamado Bolsonaro, o Messias pt.1. Quem canta é Luiz, o Visitante, um músico que se auto-intitula “o primeiro rapper de direita no Brasil”.
“Nem ele imaginaria/ Quantos soldados teria/ Lutando em prol da família/ Hoje somos a maioria.” A letra dá voz ao sentimento de muitos apoiantes do candidato de Jair Bolsonaro e do Partido Social Liberal. “A direita tem nome/ E tem cara/ Que tem coragem de dizer o que/ Muitos sabem mas não falam.”
Há canções populares conduzidas pelo acordeão, beats electrónicos, ritmos latinos. Música a diferentes velocidades para passar a mesma mensagem: “É melhor já ir-se acostumando/ Bolsonaro está chegando.”
Lucas é um dos membros mais activos. É a favor da morte dos “bandidos”, mas não dos gays, como fez questão de sublinhar numa conversa sobre os direitos dos homossexuais.
A discussão começou com um vídeo partilhado por Capet que mostra um inquérito onde os diversos intervenientes parecem concordar com o assassinato de homossexuais. O vídeo é uma montagem mal disfarçada. Pelas roupas e pelos penteados, aparenta ter sido filmado nos anos 1990. É difícil saber qual o grau de verdade destas declarações ou qual a origem.
Capet partilha-o com uma interpelação ao grupo — “vocês concordam com isso?” — e um emoji de um coração partido. Quinze minutos depois, Leonardo diz que concorda. Capet, que se confessa homossexual e apoiante de Bolsonaro, pergunta: “Mas você quer que eu morra?” “Se você for gay, talvez. Se der em cima de mim, tem que morrer. Mas se não, de boa!”
Sentido, Capet, responde com um emoji que chora.
Lucas entra na conversa: “Rapaz, eu aqui não sou contra gay de forma alguma. O que me preocupa é a questão das cartilhas gay, que quando colocados em escolas é o mesmo que um portão aberto para a pedofilia.”
Leonardo mostra pela primeira vez que se preocupa com os sentimentos de Capet, tenta explicar a sua posição: “Mas, irmão. Na bíblia diz que é errado.”
“Na bíblia também diz que é errado matar”, contra-argumenta Capet. “Jesus amava gays também.”
Leonardo: “Então não vamos poder matar os bandidos?” [Emoji com uma lágrima]
Capet: “Sim, nem gays.”
Lucas: “É o quê? Bandidos, sim. Gays, não. Tem que mandar bandido para a vala. Se a gente for pensar para esse lado, o Brasil não vai para a frente.”
Capet: “Jesus perdoava os bandidos, tanto que um foi para o céu junto com ele.”
Anderson mete-se na conversa: “Levítico 20:13. O homem que se deitar com outro homem como se fosse uma mulher, ambos cometeram uma abominação, deverão morrer, e seu sangue cairá sobre eles.”
Anderson: “Eu tenho amigos gays mas que me respeitam e que são bolsonarianos.”
Isabeli: “É por pessoas como você que Jesus e o Bolsonaro são mal falados.”
José Neto: “Acho que é melhor usarmos bolsonaristas.”
A conversa prossegue, caótica. Pelo meio, continuam a entrar novos membros, são partilhadas novas imagens com argumentos pró-Bolsonaro.
Vando: “Bolsonaro sempre se pronunciou contra o kit gay e não contra os gays.”
A estratégia é comum entre os apoiantes de Bolsonaro. Apesar de haver registo de inúmeras declarações homofóbicas do candidato (em 2011, por exemplo, numa entrevista à Playboy, disse que preferia que um filho dele morresse a declarar-se homossexual), ele nega sempre e os seus apoiantes fazem o mesmo.
O “kit gay” é outra mentira da campanha anti-Haddad, que acusa o antigo ministro da Educação de querer distribuir nas escolas um livro a incentivar os comportamentos homossexuais e com imagens explícitas de actos sexuais. O livro que aparece em vários vídeos nunca foi distribuído nas escolas nem está relacionado com o Ministério da Educação. Na realidade, é uma publicação da editora Companhia das Letras destinado a crianças pré-adolescentes e adolescentes e pretende ser uma ferramenta pedagógica sobre orientação sexual.
O submundo do WhatsApp
A luta contra a informação falsa não é nova no Brasil. Nos últimos anos, surgiram várias agências especializadas na verificação de factos e muitos órgãos de comunicação social têm os seus próprios fact-checkers. Mas a velocidade com que a informação falsa corre nas redes tem sido avassaladora para estes grupos, que estão também a descobrir que muitas pessoas não estão interessadas em saber a verdade.
O Facebook e a Google apoiam projectos de combate à proliferação das chamadas “fake news” (que na verdade, não chegam a ser notícias, mas sim informações falsas) no Brasil, mas o WhatsApp está fora do raio de actuação destas iniciativas por ser um sistema de troca de mensagens privado exterior à esfera destes dois gigantes empresariais. Uma característica do WhatsApp que está a ser aproveitada por quem quer espalhar boatos ou mentiras ou incentivar a desinformação.
Ainda assim, o WhatsApp revelou que baniu milhares de contas durante a campanha no Brasil. Entre os utilizadores censurados, esteve o filho de Jair Bolsonaro, Flávio, impedido de usar a aplicação durante quatro dias devido a “comportamentos de spam” (envio de mensagens em massa). Também um perfil criado pela campanha da ex-presidente Dilma Rousseff foi bloqueado.
Para além destes bloqueios, uma investigação do jornal Folha de São Paulo revelou um esquema de compra de disparos em massa de mensagens pago por empresários pró-Bolsonaro.
Os conteúdos partilhados no WhatsApp podem chegar a milhares de pessoas sem qualquer monitorização. Cada grupo nesta rede pode ter no máximo de 256 pessoas, mas os conteúdos ali publicados podem ser repartilhados para outros grupos de tamanho igual de forma sucessiva. A ideia é que exércitos de apoiantes de cada lado se esforcem por fazer as mensagens darem a volta ao Brasil através dos ecrãs de telemóvel.
Um estudo feito por duas universidades brasileiras, em conjunto com a Lupa, uma agência de verificação de factos brasileira, analisou as conversas de 347 grupos públicos de apoio aos candidatos à presidência do país antes da primeira volta. Os grupos foram acompanhados durante um mês e envolveram ao todo cerca de 18 mil utilizadores.
Durante este período, foram partilhadas mais de 100 mil imagens, 71 mil vídeos, 13 mil áudios, 562 mil mensagens de texto e 90 mil links. A Agência Lupa analisou a veracidade das 50 imagens mais partilhadas e concluiu que apenas quatro eram verdadeiras.
A máquina de Haddad
Ao contrário do que acontece no outro grupo, aqui a discussão é controlada. Apesar dos cerca de 110 inscritos, apenas os administradores podem falar. São onze, mas só dois se mostraram activos nestes três dias. O ritmo também é mais lento. Menos de cem mensagens por dia.
Muito do material partilhado é uma resposta aos argumentos utilizados para convencer os apoiantes pró-Bolsonaro. Fala-se de valores, como a importância dos direitos humanos e das mulheres. Denunciam manobras de distracção com a Venezuela, explicam o falso “kit gay”. Há também alertas para os perigos do fascismo e ainda uma carta de Lula.
“Não podemos deixar que o desespero leve o Brasil na direcção de uma aventura fascista, como já vimos acontecer em outros países ao longo da história”, escreve o antigo presidente numa longa missiva, em que, entre outros feitos, sublinha os avanços conseguidos na justiça que permitiram investigações como a Lava-Jato.
A conversa corre só num sentido e é mais organizada. Denuncia uma máquina partidária por trás. Há até vários hiperligações para pastas com materiais de campanha distribuídos por temas: “Zap contra o Fascismo”, “Zap contra o Bolsonaro”, “Vira voto”, “Design Activista”. Cada pasta tem imagens, vídeos, frases e até uma lista de reportagens para partilhar. Dentro do “Zap contra o Bolsonaro”, a lista só tem um link: “Filho de Bolsonaro aluga seu carro para si mesmo.”
As mensagens têm um tom mais formal e não permitem comentários: “[Time Haddad] Aqui vai material para compartilhar com evangélicos, cristãos e judeus. Compartilhem ao máximo! Está funcionando” ou “[TIME HADDAD] Lembre-se, se só você ver esses vídeos, não estaremos fazendo o trabalho mais importante. Espalhe, mande para amigos, familiares, poste no grupo da igreja, do futebol. Veja os que as pessoas respondem. Converse com elas!”
A dinâmica contrasta com a do grupo de apoio a Bolsonaro, que pulsa constantemente. Um pulsar caótico, mas que não deixa nunca de estar presente. Os adversários notam a diferença e gozam. Mas esta estratégia pode ser também uma defesa: por várias vezes apareceram apelos entre os apoiantes de Bolsonaro para se invadir grupos, páginas do Facebook e perfis públicos dos adversários.
Apesar de não termos encontrado notícias falsas dentro deste grupo, sabemos que elas também estão presentes na campanha do PT. Um exemplo: em declarações ao jornal O Globo esta semana, Haddad acusou o candidato a vice-presidente de Bolsonaro de torturador durante a ditadura militar. “O Mourão foi, ele próprio, torturador”, disse. A informação foi classificada como falsa pela Agência Lupa.
À medida que a data das eleições se aproxima, a distância entre os dois candidatos parece encurtar. No grupo de Haddad, anuncia-se a “virada”. “Sábado é dia de rua! Onde você estiver, é o último dia para virar todos. Não vamos deixar o Brasil cair no abismo.”
Do outro lado, alerta-se para uma “fraude”, que envolve a compra das empresas de sondagem e a manipulação das urnas electrónicas. “Se Bolsonaro não for eleito, já sabemos o que aconteceu e não aceitaremos o resultado!!!”
Seja o que for que acontecer no domingo, parece difícil convencer qualquer um dos lados a aceitar o outro.