A lava da síntese

A lição da música – não como embelezamento, nem técnica, mas enquanto teoria-prática artística com autonomia – informa a poesia de Joaquim Manuel Magalhães.

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miguel manso

Para Comigo segue o mesmo nexo reorganizador de Um Toldo Vermelho (Relógio D’Água, 2010), anterior reunião da poesia preservada de Joaquim Manuel Magalhães. E uma vez mais seguem-se critérios de rasura, deslocação e obliquidade, em relação a títulos autónomos do autor e, bem assim, a anteriores reuniões da sua obra poética.

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Para Comigo segue o mesmo nexo reorganizador de Um Toldo Vermelho (Relógio D’Água, 2010), anterior reunião da poesia preservada de Joaquim Manuel Magalhães. E uma vez mais seguem-se critérios de rasura, deslocação e obliquidade, em relação a títulos autónomos do autor e, bem assim, a anteriores reuniões da sua obra poética.

Não se trataria aqui nunca da banalidade de olhar como se fosse pela primeira vez. Possivelmente, até o contrário disso. De tanto olhar, de tanto “imaginar”, no sentido que lhe dava Camões, a afirmação destes versos torna-se oposta à fórmula fixa, ao que é limitado e redutor no idiomático. Por isso se extirpam todas as expressões da consagração e da obviedade. A um impulso, adivinhável, de afirmar obliquamente corresponde uma expressão que se encontra na elipse. O verso “Necrotério a camada residencial” condensou e deliu, porque induz, em quatro palavras (uma delas um simples artigo), um conjunto discernível de sentidos. A palavra “necrotério” encabeça o verso e surge sobrecarregada de morte; a extinção, o apagamento, saem dela, expulsando os sentidos que aí se escondiam, e que a presença em começo do verso põe a circular. Uma “camada” é coisa fungível, que se consegue e há-de retirar. Tudo o que a ela se agregar tenderá para a impermanência, portanto. Assim acontece com o qualificativo “residencial”. Uma situação de precariedade urbanística ou “suburbanística” paira, como poeira a assentar, depois de detonados os sentidos deste verso. Surgido na conclusão de uma estrofe, aquele verso – usado como apenas um exemplo entre vários possíveis – transporta consigo realidades fonéticas que se unem e criam relações de eco, sobreposição, replicação e paralelismo com termos anteriores. Sons individuais, como os nasais, mas também sequências mais amplas, que combinam sons vocálicos e consonânticos. Tudo isto, porém, seriam joguinhos de saleta se não estivesse integrado, como está, numa disposição muito mais vasta, que se estende a todo o livro, a toda uma concepção de poesia como busca sem descanso por uma individuação de cada componente do poema. Isso implica, na prática do poeta, e na que aqui se ensaia, descer ao particular do verso, ao de cada palavra. Como Joaquim Manuel Magalhães esclarece, a lição da música – não como embelezamento, nem técnica, mas enquanto teoria-prática artística com autonomia – informa a sua poesia. Nesse sentido, a variabilidade, a opulência, mesmo, do léxico não poderia estar mais longe da demanda pelo “vocábulo raro” de um simbolista de escola como Eugénio de Castro (com Pessanha talvez fosse diferente, mas não iremos por essa aliciante deriva).

Leiamos estes versos: “O tu voluntário, eu./ Átomo e vazio/ a opinião.// O enrabe de pé?/ Caco de sapo, roufenho,/ a sucção, o túnel./ Metáfora? O metro, sua merda.” Este fragmento de um poema (porque esta poesia) abdicou de muita coisa. Prescindiu de liames seguros, existe numa corda demasiado tensa – de dizer tão pouco, converte-se num expoente. Tudo o que pode ser dito, existe aqui em latência. Note-se a insistência em monossílabos (“o”, “eu”, “a”), que, tirando conectores como preposições e conjunções, são pronomes e determinantes. (Não é lição de gramática.) Possivelmente porque esses elementos, “vazios” de signifcado são aproveitados como percussões, batidas rítmicas, organizações do espaço e do som do poema. Por outro lado, os termos significantes (nomes, verbos, adjectivos) valem como termos num todo e enquanto elementos unos, no seu complexo som-sentido. Uma lição que, conforme elucida Joaquim Manuel Magalhães, a sua poesia colheu no serialismo de Anton Webern.

As diferenças que o leitor informado detecta, em face dos anteriores livros de Joaquim Manuel Magalhães resultam, como deverá ser óbvio, de opções diversas, porque geram (ou são geradas por) estéticas diferentes. Mantendo-se, por exemplo, a atenção irrevogável às realidades nunca exactamente dicotómicas – pelo que nelas há de interpenetração – campo-cidade, uma introdução como “Aprumo, indumentária/ convenção de vila tacanha.” tematiza diferentemente – com a “lava da síntese” de que fala um poema – os condicionalismos do espaço rural ou semi-rural, uma presença, desde muito cedo, detectável, entre outras, na poesia de Joaquim Manuel Magalhães prévia a Para Comigo.