Cat Power nas canções dos outros

Frequente visitante das canções alheias, a cantora norte-americana conseguiu convencer-nos de que (I can’t get no) Satisfaction podia perder o refrão. Agora, mostra-nos o que fazer a uma balada de Rihanna.

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Naquele que terá sido, muito possivelmente, o primeiro momento de verdadeira sufocação com a atenção conquistada pela sua música, Cat Power fez suceder a Moon Pix (1998) – pequeno terramoto no mundo das canções indie para guitarra e voz frágil e rouca (atributo natural ou conseguido com base numa dieta esmerada de tabaco e álcool) – um disco de versões intitulado The Covers Record (2000). E este arrancava com uma abordagem tão sensual quanto intrigante e desconcertante de (I can’t get no) Satisfaction, toda ela delicadeza acústica e compassada, contrária à inquietação berrada por Mick Jagger e a anos-luz de distância da espaventosa abordagem que os Devo tinham proposto para o mesmo tema dos Rolling Stones.

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Naquele que terá sido, muito possivelmente, o primeiro momento de verdadeira sufocação com a atenção conquistada pela sua música, Cat Power fez suceder a Moon Pix (1998) – pequeno terramoto no mundo das canções indie para guitarra e voz frágil e rouca (atributo natural ou conseguido com base numa dieta esmerada de tabaco e álcool) – um disco de versões intitulado The Covers Record (2000). E este arrancava com uma abordagem tão sensual quanto intrigante e desconcertante de (I can’t get no) Satisfaction, toda ela delicadeza acústica e compassada, contrária à inquietação berrada por Mick Jagger e a anos-luz de distância da espaventosa abordagem que os Devo tinham proposto para o mesmo tema dos Rolling Stones.

O desconcertante que havia na versão de Cat Power devia-se em boa parte ao desaparecimento sem qualquer rasto de um dos mais memoráveis refrães de um dos mais reconhecíveis cancioneiros da música popular do século XX. Omitir a repetição da frase que dá título àquela combustão blues-rock inventada por Jagger e Keith Richards parecia roubar de uma penada a identidade da canção. E era um gesto tão claro e provocador que baralhava, desde logo, quaisquer regras a que, presumivelmente, Cat Power pudesse aderir para recriar temas de Bob Dylan, Velvet Underground, Smog ou Mae West (com a orquestra de Duke Ellington) – a parceria entre West e Ellington, Troubled waters, era transformada em material desnudo e cru, transportável sem acidentes para o universo de Bill Callahan ou Mary Margaret O’Hara.

Só que nada disto era, afinal, resultado de um gesto tão consciente e premeditado quanto isso. “Para ser sincera, o refrão não está lá porque não sabia tocá-lo na guitarra ou no piano”, confessa Cat Power ao Ípsilon, passados 18 anos sobre a edição de The Covers Record. “Nunca tive uma aula de música, não conheço os acordes, simplesmente consigo apropriar-me de uma canção quando quero escutá-la.” O que aconteceu no caso específico de Satisfaction foi que Chan Marshall tanto ouviu a cassete Hot Rocks 1964-1971, compilação dos primeiros tempos dos Stones, na carrinha em que se deslocava quando vivia em Atlanta que, quando a fita se estragou e privada de escutar uma canção pela qual se tornara obsessiva, não teve alternativa a pegar na guitarra e inventar uma música para acompanhar a letra. “E isto apenas porque queria ouvi-la”, diz. “Foi assim que fiz essa versão”.

The Covers Record, disco com recursos mínimos – pouco mais do que Cat Power, uma guitarra, um piano e as canções que lhe apeteceu ouvir –, serviu para a cantautora tomar balanço para os álbuns mais expansivos da sua carreira: You Are Free (2003) e The Greatest (2006). Com The Greatest, em particular, assistida pela Memphis Rhythm Band, dirigia-se para terrenos fronteiriços entre a folk e a soul, o mesmo tom que empregaria ao regressar às versões, passados dois anos, com a edição de Jukebox, álbum em que se atirava aos reportórios de Dylan, Frank Sinatra, James Brown, Hank Williams, Billie Holiday, Janis Joplin ou Joni Mitchell.

Agora, em Wanderer, mergulha em Stay, balada grandiloquente que Rihanna gravou no álbum Unapologetic, composta por Mikky Ekko e Justin Parker (colaborador habitual de Lana del Rey, facto que une as pontas soltas), numa escolha deveras surpreendente tendo em conta a tendência para os clássicos que costuma nortear a foice em cancioneiro alheio da norte-americana.

Tal como acontecera com Satisfaction, também agora ao gravar Stay, Cat Power não se dedicou a estudar exaustivamente o seu objecto de trabalho. Aconteceu-lhe no soundcheck de um festival em Los Angeles descer os dedos sobre o teclado do piano e reconhecer os acordes que lhe faziam subir a letra de Stay à boca. Passados dois dias, numa das sessões de gravação de Wanderer, enquanto o engenheiro de som Rob Schnapf calibrava instrumentos e captações, pediu a Chan que aquecesse e tocasse qualquer coisa ao piano. Era uma mera etapa de preparação de estúdio antes de avançarem para a guitarra a fim de fazerem o mesmo trabalho de aquecimento e afinação técnica. Acontece que, ao piano, as mãos de Chan voltaram a cair sobre os acordes de Stay - “a minha nova canção preferida que, embora tivesse saído há uns anos, eu tinha descoberto naquela mesma semana”, recorda ao Ípsilon –, recuperando a memória que ficara do soundcheck. E avançou pelo tema, apoiando-se nos versos de que se lembrava.

“Eu não sabia que ele estava a gravar”, diz. “Só passados mais dois dias, quando estávamos a terminar os trabalhos, é que ele me perguntou se me podia tocar uma coisa. E tinha gravado o Stay. Por isso aquilo que se ouve no disco não sou eu a tentar recriar a canção de forma diferente, é mesmo porque não sei tocar a música e às vezes não me lembro da letra toda.” Mas esse sempre foi um dos cenários perfeitos para Cat Power: aqueles em que não tenha de tentar demasiado. Deixada assim, à solta, a tentar refazer canções como se lembra delas ou lhe apetece no momento sempre deu bons resultados. E sempre nos obrigou a reconsiderar verdades incontestáveis. Como aquela que dizia que (I can’t get no) Satisfaction jamais poderia sobreviver à eliminação do refrão.