A turbulência é mais serena com Neneh Cherry
As palavras reflectem o mundo agitado dos nossos dias, enquanto a música é serena e elegante, como se estivéssemos a escutar os Massive Attack do início como nunca os ouvíramos. É assim o excelente novo álbum de Neneh Cherry com produção de Four Tet.
Há quatro anos dizíamos que o álbum que acabara de lançar (Blank Project) era o seu melhor de sempre. Agora acaba de editar Broken Politics e não temos dúvidas: este é melhor. Estão lá as influências de sempre (dub, jazz, hip-hop, electrónicas) mas organizadas de forma a fazer sobressair ainda mais a voz, a intimidade, as palavras e a elegância.
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Há quatro anos dizíamos que o álbum que acabara de lançar (Blank Project) era o seu melhor de sempre. Agora acaba de editar Broken Politics e não temos dúvidas: este é melhor. Estão lá as influências de sempre (dub, jazz, hip-hop, electrónicas) mas organizadas de forma a fazer sobressair ainda mais a voz, a intimidade, as palavras e a elegância.
Como no álbum anterior parte do segredo reside no produtor, o inglês Kieran Hebden, ou seja Four Tet, que parece mais uma vez ter entendido na perfeição o que a sua voz necessita para se expressar na perfeição, e também em Cameron McVey, seu marido há cerca de trinta anos, que divide com ela a escrita de algumas das canções. Hoje, Neneh Cherry, 54 anos, parece estar a passar por um verdadeiro renascimento criativo.
E não é apenas um disco. Vimo-la ao vivo, há três semanas, no contexto do festival Waves Vienna, na capital austríaca, e foi patente que está mais desperta do que nunca. Durante cerca de uma hora desfiou quase todas as canções do novo álbum, cedendo apenas à curiosidade de alguns admiradores no encore, interpretando dois dos sucessos que a tornaram conhecida em todo o mundo (I’ve got you under my skin, original de Cole Porter que Frank Sinatra popularizou, e Manchild) enunciando no entanto que a nostalgia não lhe interessa nada. A memória e a história, isso sim.
Apesar de não ter editado muitos álbuns (cinco), história é coisa que não lhe falta. Foi na alvorada dos anos 1980 que Neneh Mariann Karlsson, nascida na suécia, filha da pintora Monica Karlsson e do percussionista da Serra Leoa Amadu Jah (o padrasto foi Don Cherry, falecido em 1995, o conhecido trompetista de jazz que esteve presente na sua vida desde praticamente o início) se lançou nas aventuras da música. Com uma vida nómada, seguindo os pais pelo mundo, vivendo entre a Suécia, Nova Iorque e Londres, foi aí que acabou por dar nas vistas no caldo cultural do pós-punk. Cantou com o grupo The Cherries, teve curtas experiências em formações como as The Slits e The Pop Group, e acabou por se juntar aos Rip Rig + Panic, banda que fugia aos padrões da época, apostando numa linguagem onde o jazz mais livre acabava por ganhar contornos pop.
Mas acabou por ser depois do fim do grupo que se deu o encontro decisivo da sua vida. Falamos do seu marido, o músico e compositor Cameron McVey, que a incentivou a prosseguir uma carreira a solo, sendo ele a compor a maior parte do material a incluir no seu primeiro álbum a solo, Raw Like Sushi (1989), depois da estreia um ano antes com o single Buffalo stance, uma mistura de sensibilidade pop com a energia do hip-hop, que ainda é recordado como um dos seus maiores êxitos globais.
Nessa fase estava totalmente mergulhada em formas alternativas de olhar para a soul, hip-hop e dub, mas ao mesmo tempo sofria as pressões da indústria para repetir os êxitos iniciais. Enquanto isso, grupos ingleses como os Soul II Soul do álbum Club Classics Vol.1 (1989) e Vol. II: 1990 – A New Decade (1990), preparavam o que se seguiria. E o que surgiu depois foi Blue Lines (1991), o álbum inaugural dos Massive Attack, onde mais uma vez Cameron McVey foi decisivo, encarregando-se da produção executiva e sendo um dos grandes alentos para que o projecto enveredasse pela linha estética que iria desembocar no chamado trip-hop.
No meio desses acontecimentos, Neneh Cherry, pareceu ter-se perdido um pouco. O álbum seguinte, Homebrew (1992), não conseguia fortalecer a sonoridade hip-hop-electro do primeiro álbum e também não correu muito bem do ponto de vista comercial. Isto apesar de ter regressado às tabelas de vendas dois anos depois com Seven seconds, um dueto com Youssou N’ Dour. Em 1996 saiu o álbum Man e algumas colaborações desenvolveram-se depois (de Tricky a Cher, passando mais tarde pelos Gorillaz ou Peter Gabriel), mas como nos dizia há quatro anos, a partir de determinada altura a família tornou-se na sua grande prioridade.
Tem três filhos. Um deles é a jovem cantora Mabel, que tem dado nas vistas nos universos do R&B. Em 2012, o regresso. Primeiro com os escandinavos The Thing, um trio de jazz experimental, e depois com os londrinos RocketNumberNine. Só faltava surgir o outro elemento chave, Four Tet, que conhecia há muito. Há quatro anos enfiou-se em estúdio com músicos e produtor e saiu de lá com um magnífico álbum. Desta feita o processo foi mais circunscrito, com Four Tet a optar por criar a sonoridade de forma solitária, ao computador, sem recurso a músicos.
Em palco é tudo recriado de forma soberba, com Neneh Cherry, na voz e na interacção com a assistência, fazendo questão de explicitar a inspiração politica de alguma canções – Kong foca o problema dos refugiados, Faster than the truth a desinformação, Soldier os direitos das mulheres e Shot gun shack a violência da venda de armas autorizada – sendo acompanhada por mais cinco protagonistas, duas mulheres e três homens, entre eles Cameron McVey, que vão tocando percussões, baixo, harpa, teclados ou programações. Em comparação com o disco, o som em concerto é mais encorpado, mas a subtileza presente nas canções não se perde, com a voz dela preenchendo silêncios, numa toada intimista e reflexiva, onde existe lugar também para zonas de dinamismo rítmico.
O que é interessante em Broken Politics é o facto de pegar numa série de pontas soltas que ela poderia ter desenvolvido no início dos anos 1990, mas que acabaram por ser resgatadas pelos Soul II Soul, Massive Attack ou Portishead. Não é por acaso que 3-D dos Massive Attack também por aqui surge. É que realmente a maior parte dos temas baseia-se nas linhas de baixo sólidas e nas atmosferas expansivas do pós-hip-hop, com elementos de jazz a vogar pelo espaço, num balanço rítmico que embala. Por vezes parece que regressamos a Blue Lines, o álbum que em parte foi gravado na casa do casal Cherry, misto de desolação e projecção de esperança. É como se o casal olhasse para trás e para a frente ao mesmo tempo, reflectindo o mundo tumultuoso e ruidoso à sua volta, mas fazendo-o com música que impõe serenidade e palavras que conduzem à reflexão.