José Barahona e Jorge Cramez trazem ao Doclisboa o cinema da urgência e da generosidade
Dois realizadores portugueses estreiam dois belíssimos documentários no festival: Alma Clandestina trata do Brasil sob a ditadura, Actos de Cinema esgueira-se para trás da câmara.
“Pesadelo é sinónimo de medo, e eu não vou viver com medo.” Assim falava Maria Auxiliadora Lara Barcellos (1945-1976), Dorinha ou Dodora para os íntimos, mineira, estudante de Medicina, idealista, resistente contra a ditadura militar, contemporânea de Dilma Rousseff na clandestinidade, mulher “forte e valente”, sempre alegre. A um entrevistador, num filme que deu volta ao mundo, falava com um sorriso nos lábios das torturas que sofreu às mãos da polícia política brasileira durante quase um ano de prisão, mas não porque achasse graça alguma ao facto: “É só a maneira como falo.” Banida do Brasil, exilada primeiro no Chile, depois no México, na Bélgica, em França e finalmente na Alemanha, Dorinha suicidou-se atirando-se para a frente de uma carruagem do metro de Berlim. Tinha 31 anos. “Cada um dos meus renascimentos custou parte de minha vida futura”, tinha então concluído; pagou o preço do confronto entre a sua fé num futuro ideal para o Brasil e a realidade geopolítica do mundo em que vivia.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
“Pesadelo é sinónimo de medo, e eu não vou viver com medo.” Assim falava Maria Auxiliadora Lara Barcellos (1945-1976), Dorinha ou Dodora para os íntimos, mineira, estudante de Medicina, idealista, resistente contra a ditadura militar, contemporânea de Dilma Rousseff na clandestinidade, mulher “forte e valente”, sempre alegre. A um entrevistador, num filme que deu volta ao mundo, falava com um sorriso nos lábios das torturas que sofreu às mãos da polícia política brasileira durante quase um ano de prisão, mas não porque achasse graça alguma ao facto: “É só a maneira como falo.” Banida do Brasil, exilada primeiro no Chile, depois no México, na Bélgica, em França e finalmente na Alemanha, Dorinha suicidou-se atirando-se para a frente de uma carruagem do metro de Berlim. Tinha 31 anos. “Cada um dos meus renascimentos custou parte de minha vida futura”, tinha então concluído; pagou o preço do confronto entre a sua fé num futuro ideal para o Brasil e a realidade geopolítica do mundo em que vivia.
Não há por onde esconder que a história de Dorinha é relevante para os dias de convulsão política que o Brasil vive, mas o fio da navalha destes dias não estaria na cabeça do português radicado no Brasil José Barahona (Estive em Lisboa e Lembrei de Você) quando pôs mãos à obra em Alma Clandestina, que tem agora estreia mundial na secção paralela do Doclisboa Da Terra à Lua, em sessão única (Cinema São Jorge, dia 26, às 21h30). Inspirado num projecto teatral de Jorge Melo, e recorrendo a imagens de arquivo e entrevistas originais contemporâneas a amigos e familiares sobreviventes, Barahona constrói uma “fantasia biográfica” ancorada numa recriação teatral da vida de Dorinha, cujas cartas e textos são lidos pela actriz Sara Antunes num palco onde são igualmente projectados documentos, imagens e arquivos de época.
Essa ancoragem ficcional serve de fio de ligação entre os nossos dias e o meio século decorrido desde os eventos relatados. O seu constante vai-vém entre passado e presente ajuda Alma Clandestina a recusar a lógica da biografia mais ou menos tradicional, e a criar um retrato de uma pessoa de corpo inteiro: não apenas Dorinha, a estudante, Dorinha, a revolucionária, ou Dorinha, a exilada, mas sim Dorinha, a mulher, que queria ajudar a mudar o mundo para melhor e para quem vida e ideais não eram compartimentos estanques. A mulher que não quis ter medo quando todos os outros o tiveram.
O momento encarregou-se de tornar Alma Clandestina, obra produzida para o canal independente brasileiro Cine Brasil TV mas com fôlego de grande ecrã, em “cinema de urgência” que fala ao nosso mundo; mas mesmo que não fosse (infelizmente) esse o caso, a inteligência do trabalho de Barahona, que assina aqui (de longe) o seu melhor filme, chegaria e sobraria para o recomendar.
Outro cineasta português nesta edição do Doclisboa é Jorge Cramez, que procurou no seu arquivo pessoal para criar os dois filmes que mostrou no festival. Com mais de duas décadas de trabalho como assistente em rodagens de Teresa Villaverde, João Botelho, Fernando Lopes ou Miguel Gomes, para lá de realizador em nome próprio com várias curtas e duas longas de ficção (O Capacete Dourado e Amor, Amor), Cramez foi coleccionando filmagens, momentos e memórias das rodagens em que foi participando, e delas tirou duas obras desiguais. Na competição internacional, mostrou Antecâmara, 52 minutos com o seu quê de experimental, exclusivamente compostos por imagens retiradas do monitor video assist durante as rodagens de Em Segunda Mão, de Catarina Ruivo (2012), e Cisne, de Teresa Villaverde (2011). Mas é a longa de 115 minutos que agora vai passar na secção paralela Riscos, Actos de Cinema (Culturgest, dia 25, às 21h30; e Cinema Ideal, dia 28, às 22h15), que mereceria estar a concurso.
Actos de Cinema é um generoso olhar “de dentro” sobre o “campo de vida intensa” (nas palavras do actor Marcello Urgeghe) que é a “panela de pressão” de uma rodagem, enquadrado por depoimentos de actores, técnicos e realizadores com quem Cramez trabalhou ao longo dos anos. Villaverde, Ana Moreira, Carla Bolito, Beatriz Batarda, Botelho, Gomes, João Mário Grilo ou o director de fotografia João Ribeiro são chamados a falar do que é para eles o cinema e do modo como estar no plateau desvenda ou amplifica essa compreensão. Acaba por ser o técnico de som Vasco Pimentel (pelo meio de uma autêntica master class de gravação de som) a dar, às tantas, a melhor definição de uma rodagem: “Os filmes são os sonhos de outra pessoa, e nós estamos lá para ajudar esse sonho a ser partilhado com os outros.” Isso ganha uma outra dimensão quando vemos imagens de cineastas que já não estão entre nós, como Fernando Lopes (98 Octanas) ou José Álvaro de Morais (Quaresma).
De certo modo, parece Cramez estar a dizer-nos: o cinema é uma dádiva que tem de ser entregue ao espectador tal como foi recebida, com paixão e entrega, mas também com desprendimento e generosidade. Um pouco como este filme, que dirá certamente mais a quem acompanha o cinema feito em Portugal, mas que (apesar de uma duração que podia ter sido mais trabalhada) convida todos os outros a compreenderem um pouco mais a dinâmica criativa de uma cinematografia que (infelizmente) não é profeta no seu próprio país.