Criar comunidade e construir a cidade
A poucos meses da celebração dos 50 anos da morte de António Sérgio, grande pensador e uma das figuras maiores do cooperativismo em Portugal, chegou a hora de voltarmos a inspirar-nos no modelo cooperativo e devolver a cidade aos cidadãos.
Ils ne savent pas que les maisons font la ville, mais que les citoyens font la cité
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Ils ne savent pas que les maisons font la ville, mais que les citoyens font la cité
Jean-Jacques Rousseau
No dia em que escrevo este texto, dificilmente alguém se atreverá a negar o imenso problema que várias cidades portuguesas - com Lisboa e Porto à cabeça - enfrentam ao nível de habitação. Partidos políticos, associações de moradores, ativistas e vários especialistas têm avançado diferentes diagnósticos e possíveis soluções para lhes dar resposta. Ainda assim, há um modelo que pouca atenção tem recebido: o das cooperativas de habitação.
Em Portugal, o cooperativismo de habitação está fortemente associado ao 25 de Abril. Após décadas de salazarismo com milhares de pessoas sem casa ou a viver em barracas, o primeiro governo provisório avançou logo com a criação do SAAL (Serviço Ambulatório de Apoio Local) para tentar dar uma habitação digna a milhares de portugueses. É também ainda durante o ano de 1974 que é aprovada a primeira legislação referente às cooperativas de habitação económica bem como os instrumentos de apoio à sua criação. Deste esforço resultou a multiplicação de projetos cooperativos tendo, no seu auge, albergado cerca de 5% da população em Portugal.
Depois deste período de crescimento, uma série de razões - desde logo o facilitar do crédito à habitação e a ultra-liberalização do mercado - fez com que as cooperativas de habitação começassem a diminuir, fixando-se agora em menos de 400 os projetos cooperativos habitacionais. Chegou a hora de inverter este rumo.
Se é certo que uma boa parte dos projetos de cooperativas de habitação surgem da necessidade de garantir habitação de qualidade a baixo preço, são cada vez mais os exemplos de cooperativas em que o fator ideológico está presente. Para além do direito à habitação a baixo preço, os cooperantes são movidos pela vontade de um estilo de vida e de habitação mais próximo dos seus ideais e assente na maior partilha dos espaços comuns, num menor impacto ecológico, na partilha de recursos e na ligação ao bairro e à comunidade onde a habitação se situa. Em Espanha, por exemplo, têm surgido alguns destes projetos de co-habitação verde onde grupos se juntam não apenas para ter um teto mas para reclamar o direito à cidade e com boas condições, desde os acessos e transportes públicos até à qualidade dos materiais de construção que reduza o impacto ambiental (e os custos financeiros) ao longo dos anos.
É também do país vizinho que surgem exemplos que poderiam inspirar os decisores políticos portugueses. A cidade de Barcelona - governada por Ada Colau, que se tornou conhecida como ativista contra os despejos - tem vindo a ceder edifícios públicos a cooperativas de habitação que ficam responsáveis pela sua reconstrução e manutenção. Fá-lo num regime de comodato com a duração de 75 anos, mantendo assim a propriedade dos imóveis. Esta é uma situação onde todos saem a ganhar: os novos residentes porque ganham uma casa a um preço protegido da especulação imobiliária, a autarquia porque ajuda a criar novas habitações a um preço justo mantendo a propriedade dos edifícios e a cidade porque vê novas casas surgir sem que tal contribua para o aumento da especulação.
Criar estas comunidades cooperativas é também criar uma cidade de todos e para todos sem ter de jogar o desregrado jogo que tem regido as políticas de habitação dos últimos anos. E olhando para as centenas de edifícios - de apartamentos a antigas fábricas ou armazéns - atualmente detidos pelo Estado, um regime de comodato como o que atualmente está a ser avançado em Barcelona torna-se uma opção lógica a ter em conta. A poucos meses da celebração dos 50 anos da morte de António Sérgio, grande pensador e uma das figuras maiores do cooperativismo em Portugal, chegou a hora de voltarmos a inspirar-nos no modelo cooperativo e devolver a cidade aos cidadãos.