Ninguém quer partir a corda, nem em Bruxelas nem em Roma
1. O mergulho das bolsas no vermelho que ontem se verificou da Ásia aos EUA, passando pela Europa, não pode ser apenas atribuído ao braço-de-ferro entre Bruxelas e Roma por causa da proposta de orçamento que o Governo italiano enviou para a Comissão e que a Comissão recusou. Os analistas referem uma série de efeitos conjugados, que passam por Itália mas também pelo cenário, que deixou de ser impossível para passar a ser apenas improvável, de um Brexit sem acordo, até ao efeito nos mercados petrolíferos do escândalo do assassínio do jornalista saudita Jamal Khashoggi, que está a tomar proporções dramáticas.
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1. O mergulho das bolsas no vermelho que ontem se verificou da Ásia aos EUA, passando pela Europa, não pode ser apenas atribuído ao braço-de-ferro entre Bruxelas e Roma por causa da proposta de orçamento que o Governo italiano enviou para a Comissão e que a Comissão recusou. Os analistas referem uma série de efeitos conjugados, que passam por Itália mas também pelo cenário, que deixou de ser impossível para passar a ser apenas improvável, de um Brexit sem acordo, até ao efeito nos mercados petrolíferos do escândalo do assassínio do jornalista saudita Jamal Khashoggi, que está a tomar proporções dramáticas.
A Arábia Saudita, que produz um em cada 10 barris de crude no mundo, tem o papel de “estabilizador” dos preços do petróleo. As reacções ocidentais, exigindo um total esclarecimento do que se passou no consulado saudita em Istambul, podem vir a desestabilizar os mercados. Matteo Salvini não é, portanto, o único “culpado”.
2. Mas o braço-de-ferro entre a Comissão e o Governo italiano é um sinal de perturbação que não pode ser ignorado, embora fosse largamente antecipado. Roma enviou para Bruxelas uma proposta de Orçamento prevendo um défice que não está em linha com as recomendações da Comissão nem com as regras do Pacto de Estabilidade e Crescimento, implicando uma subida de 1,9 por cento para 2,4 por cento.
Não foi fácil ao Governo de Roma, fruto de uma coligação entre o movimento populista Cinco Estrelas e a Liga nacionalista de Matteo Salvini, encontrar ele próprio um entendimento sobre as grandes prioridades orçamentais. Luigi Di Maio, o vice-primeiro-ministro do Cinco Estrelas, insistiu no “rendimento cidadão” de 780 euros – um rendimento mínimo atribuído a todos os italianos, que prometera na campanha eleitoral –, mesmo que de forma faseada. Di Maio recolheu a maioria dos votos no Sul da Itália, a região com níveis de pobreza mais elevados. Salvini prometeu uma baixa generalizada dos impostos sobre as pessoas e as empresas. Os seus votos vieram do Norte rico e desenvolvido.
A conjugação das duas promessas fez disparar o défice. A reacção de Bruxelas foi declará-lo inaceitável e devolvê-lo à precedência: uma estreia. Roma respondeu que não tencionava alterá-lo. Salvini recorreu à sua habitual retórica: “É bom que os senhores da especulação saibam que isso não muda nada, não faremos marcha atrás. (…) Eles [a Comissão] não estão a atacar um governo, mas um povo. São estas coisas que enfurecem os italianos.” O primeiro-ministro Giuseppi Conte, independente, pôs alguma água na fervura: “Read my lips: não há a mínima hipótese de um Italexit, de Itália sair da Europa ou da zona euro”.
3. Como se pode sair daqui? É altamente improvável que qualquer dos lados esteja disposto a quebrar a corda, mesmo que tencione esticá-la o mais possível. Por razões facilmente entendíveis. A Itália não é um país que possa ser resgatado como foram Portugal, a Grécia ou a Irlanda. É a terceira economia do euro e uma das maiores do mundo.
Em Bruxelas e nas capitais europeias, há perfeita consciência do que significaria a insolvência de um país com esta dimensão. Os efeitos políticos, como se viu na crise anterior, seriam igualmente devastadores. “A Itália é demasiado grande para falhar, económica e politicamente”, escreve o diário alemão Handelsblatt. Do seu lado, Salvini, cuja popularidade não pára de aumentar, sabe que há limites para a sua retórica antieuropeia.
A banca italiana já recuperou, em boa medida, da crise que alastrou por toda a zona euro, a partir de 2009, mas ainda tem fragilidades. Precisa de financiamento externo e possui activos que não pode ver desvalorizados subitamente.
Salvini mantém um discurso que não é pura e simplesmente antieuropeu, mas apenas contra “esta Europa”. A sua força está na crescente popularidade do governo do qual ele é a figura principal, que atinge hoje os 60 por cento. A sua fraqueza advém da persistente estagnação da economia italiana, que se mantém há quase duas décadas – os sinais de retoma são incipientes e esta é também a justificação apresentada em Bruxelas para a dimensão do défice.
Cairá na tentação da chantagem, sabendo até que ponto a Europa teme uma crise italiana? Pode ser, mas dificilmente irá ao ponto de quebrar a corda. A outra boa notícia é que, até agora, o contágio italiano ainda não se propagou a nenhum das economias do Sul.