Um dia aberto pelo interior

Não deveríamos, como país, instituir um dia oferecido a todos os que se predispusessem a sair do sofá, e a fazer qualquer coisa pelos nossos concidadãos que resistem mantendo de pé uma parte do país que nos faz falta?

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O mundo deles não mudou num ano. Limpou-se a fuligem das paredes, respirou-se fundo e reconstruiu-se o que havia para reconstruir, mas o Chão do Rio, um projecto de turismo de aldeia especial, não é o exemplo do país. Nem é preciso sair daquela propriedade idílica, em Travancinha, Seia, idealizada por uma estranha àquela terra que se deixou entranhar pela beleza do lugar, para ver as cicatrizes: riscos negros erguidos ao céu, sombras de pinheiros no lugar de pinheiros, os matos e as acácias tomando o espaço vazio.

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O mundo deles não mudou num ano. Limpou-se a fuligem das paredes, respirou-se fundo e reconstruiu-se o que havia para reconstruir, mas o Chão do Rio, um projecto de turismo de aldeia especial, não é o exemplo do país. Nem é preciso sair daquela propriedade idílica, em Travancinha, Seia, idealizada por uma estranha àquela terra que se deixou entranhar pela beleza do lugar, para ver as cicatrizes: riscos negros erguidos ao céu, sombras de pinheiros no lugar de pinheiros, os matos e as acácias tomando o espaço vazio.

A caminho de Seia, a paisagem continua a não estar para sorrisos. E no entanto, passado um ano desses fogos de Outubro tocados a vento, que quase roubaram o sonho de Catarina Vieira e Rodolfo Silva, no Chão do Rio foi possível sorrir. No sábado passado as portas abriram-se a quem quis conhecer este projecto recentemente certificado com o selo Biosphere Responsible Tourism, e dezenas de habitantes da aldeia de Travancinha atravessaram o ribeiro, juntando-se a gente de outros lugares para conversar sobre a floresta que temos, e a que queremos ter, e para simplesmente conviver, aproveitando também para participar em múltiplas oficinas de saberes vários, oferecidas aos participantes, sem custos, por empresas e entidades que trabalham com o casal.

Apesar de frequentar a aldeia desde 2001, Catarina ainda nem conhecia a sede do Sporting Clube de Travancinha, do outro lado da rua, onde os convivas se juntaram, para o almoço, e ficou a pensar no que poderá vir a fazer, no futuro, com aqueles vizinhos que lhe abriram a porta para um grande salão de festas ali à mão de semear. Outros vizinhos, passeando entre o casario de telhados de colmo que tanto caracterizam a propriedade, confessavam a admiração por aquela forasteira que há uns anos acreditou neste lugar perdido no caminho para a serra, e que arriscou abrir ali um projecto que ambicionou o sucesso tirando apenas partido do que a aldeia já tinha para dar, e de uma vontade de aproximação à natureza.

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Helena Flores

Essa vontade, não derrubada pelo desastre de Outubro de 2017, ouvi-a na boca de Ana e Nuno Direito, que, depois de quatro anos a trabalhar no litoral, regressaram a esta região para fundar a empresa de vestuário New Tradition; ou de Luiz Morgadinho, que deixou Lisboa com Cristina há 19 anos, e regressou à aldeia da avó dela, Santa Comba de Seia, onde cultivam a terra e abriram a casa de turismo Retiro da Lameira. E da mesma forma a escutei, carregada de resistência e de esperança, na voz de Sofia Ribeiro, uma das três habitantes de Travancinha para quem o Chão do Rio significa um emprego, todo o ano.

Mas esta vontade, escutada em dia aberto, num turismo de aldeia, não tem chão, ou gente, para medrar, em muito do país despovoado, queimado, e, agora, ou por agora, alvo da nossa atenção. Muitos desistiram simplesmente, cansados de esperar por ajuda, incapazes de recomeçar, deixando mais terra ao abandono. E para isto não há soluções fáceis, nem sequer consensos, como se percebeu pelo debate que encheu a sala grande de uma das casas, antes de uma visita à floresta do futuro, que a gente do Chão do Rio está a tentar erguer, no monte sobranceiro às casas, com carvalhos, aveleiras, sobreiros e medronheiros.

Cândido Miranda, nascido na serra, sobrevivente dos fogos, como muitos ali, propôs que se abrisse, em pleno Chão do Rio, uma escola da floresta, que ensine as crianças a amar uma paisagem em franco desaparecimento, num apelo que mereceu aplauso. Ouvi, e anotei. No regresso a casa, no dia seguinte, com as minhas filhas assombradas por um arco-íris que emergia da floresta enegrecida, tacteando o céu, questionei-me, perante o ambiente participado da véspera, se não poderíamos fazer mais. E se não deveríamos, como país, instituir um novo feriado: um dia aberto no interior. Um dia oferecido a todos os que se predispusessem a sair do sofá, e a fazer qualquer coisa pelos nossos concidadãos que resistem mantendo de pé uma parte do país que nos faz falta.