No Doclisboa, o passado (não) foi lá atrás

Histórias e tradições, da Argentina à Suíça, de Portugal ao Brasil, em alguns dos filmes mais merecedores de atenção no concurso do festival lisboeta.

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Algures nas Pampas argentinas, há um povoado esquecido do qual apenas restam uma estação de comboios, reconvertida em alojamento local, e objectos resgatados à terra como fósseis de outras eras – pedaços de pratos, copos, taças. Não são achados de uma qualquer cultura indígena milenar, porque as culturas indígenas milenares não tinham frascos de medicamentos; são o que ficou de Mariano Miró, uma pequena aldeia estabelecida por imigrantes italianos que rumaram às Pampas para desbravar e semear terras virgens, e que desapareceu ao fim de mais ou menos dez anos, por volta de 1910.

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Algures nas Pampas argentinas, há um povoado esquecido do qual apenas restam uma estação de comboios, reconvertida em alojamento local, e objectos resgatados à terra como fósseis de outras eras – pedaços de pratos, copos, taças. Não são achados de uma qualquer cultura indígena milenar, porque as culturas indígenas milenares não tinham frascos de medicamentos; são o que ficou de Mariano Miró, uma pequena aldeia estabelecida por imigrantes italianos que rumaram às Pampas para desbravar e semear terras virgens, e que desapareceu ao fim de mais ou menos dez anos, por volta de 1910.

A lição de Miró. Las huellas del olvido, uma das mais fascinantes propostas do concurso internacional do Doclisboa 2018 (Culturgest, quarta-feira, dia 24, às 19h; e sexta-feira, dia 26, às 14h), é muito simples: não vale a pena ter ilusões, o tempo encarregar-se-á de transformar em pó tudo aquilo em que acreditamos. A argentina Franca González, natural da região, decidiu-se a trazer à luz a breve história de Mariano Miró. O seu filme é uma investigação arqueológica da história das Pampas, com a diferença de que não estamos aqui a buscar fósseis de outros séculos mas sim a resolver o quebra-cabeças de uma aldeia que se ergueu, desabrochou e morreu faz agora cem anos. 

Miró é uma história da conquista do Oeste compactada em apenas dez anos – os imigrantes piemonteses como pioneiros desbravadores do Oeste Selvagem, lutando por uma vida melhor num local inóspito, sucumbindo à pressão dos latifundiários e dos barões das terras que acabam por expulsá-los e por tornar Miró numa aldeia-fantasma. Ao mesmo tempo, é um relato de imigração, das desigualdades sociais no início do século XX, do estatuto de segunda classe dos imigrantes gringosMiró tem um problema, que é querer meter muita coisa num só filme sem ter tempo para isso; mas faz muito com o que tem, e fá-lo dentro de uma lógica mais ou menos tradicional do documentário, com inteligência e desenvoltura.

Se Miró fala do que foi e já não é, a curta que lhe serve de complemento (nas mesmas sessões), a brasileira Maré, fala do que foi e ainda é: no caso, uma comunidade quilombala do Recôncavo da Bahia, onde Amaranta César, professora de cinema, encena a história de duas meninas da aldeia que vão pelo manguezal apanhando marisco e acabam apanhadas pelo encher da maré. Patrícia e Diguinha deviam estar na escola, porque a mãe lhes quer dar armas para sobreviverem sem terem de se “humilhar em casa de mulher branca”, mas a atracção da lama é irresistível. O resultado remete-nos para o cinema de Gabriel Mascaro ou para o excelente Cocote, de Nelson Arias, no modo como o registo documental das tradições e canções quilombalas e a ficção inspirada pela realidade se cruzam e contaminam para criar um olhar bruto e puro sobre a tradição e a ancestralidade.

Duas outras propostas portuguesas percorrem também os caminhos da história. Na curta Vacas e Rainhas (São Jorge, quarta-feira, dia 24, às 18h45; e Culturgest, sábado, dia 26, às 16h15), Laura Marques regista a sua experiência como pastora de vacas nos Alpes suíços, inscrita numa tradição de longa data que vê os criadores locais elegerem anualmente a “rainha das vacas”. O prazer do filme está no modo como a própria realizadora está ao mesmo tempo dentro e fora dela, através de um olhar e de uma câmara que registam, com humor e bonomia, a sua própria aprendizagem de uma tradição que só de fora parece estranha.

Terra, da dupla Hiroatsu Suzuki e Rossana Torres (Culturgest, quarta-feira, dia 24, às 21h30; e São Jorge, sexta-feira, dia 26, às 14h), é um belo objecto contemplativo sobre o quotidiano de um carvoeiro alentejano que ainda produz carvão de forma tradicional em fornos artesanais, espécie de formigueiros gigantes que soltam nuvens de fumo enquanto a madeira no seu interior arde. Nada parece acontecer, porque tudo se passa no interior dos fornos; resta-nos observar pacientemente a natureza do vale do Guadiana, os caçadores que vão passando, as nuvens de fumo que saem hipnoticamente dos fornos, tudo enquadrado e filmado com uma cativante plasticidade zen. Terra tem uma enorme mais-valia, que é a capacidade de usar apenas a sua imagem para contar uma história: tudo o que é preciso saber sobre a vida do carvoeiro está aqui, sem precisar de palavras, e o filme explica-a com infinita elegância. O passado continua presente.