Espectro do fascismo ronda a Amazônia
Para Bolsonaro, a Amazônia é apenas um lado não-desenvolvido e remoto do Brasil, que só conta em seus pronunciamentos como “lugar de índios, quilombolas e caboclos” ignorantes.
O ano de 2018 é simbólico para a Floresta Amazônica. Um fantasma ronda a região. Corporifica-se na expectativa do candidato à Presidência da República, Jair Messias Bolsonaro, ser eleito Presidente do Brasil em 28 de outubro próximo. A Amazônia é, ao mesmo tempo, uma das primeiras e últimas utopias do planeta Terra. Antes mesmo de o Novo Mundo ser descoberto, a figuração de um lugar perdido, remoto, de um locus de repouso e, ao mesmo tempo, de inquietação, já se desenhava, no imaginário social, em temas e de episódios fantásticos.
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O ano de 2018 é simbólico para a Floresta Amazônica. Um fantasma ronda a região. Corporifica-se na expectativa do candidato à Presidência da República, Jair Messias Bolsonaro, ser eleito Presidente do Brasil em 28 de outubro próximo. A Amazônia é, ao mesmo tempo, uma das primeiras e últimas utopias do planeta Terra. Antes mesmo de o Novo Mundo ser descoberto, a figuração de um lugar perdido, remoto, de um locus de repouso e, ao mesmo tempo, de inquietação, já se desenhava, no imaginário social, em temas e de episódios fantásticos.
A ignorância desse candidato sobre a região está na pobreza de suas ideias econômicas e políticas com as quais pretende guiar o seu possível mandato. A Amazônia é uma parte especial do Brasil cuja integração entre floresta, hidrografia, assim como diversidade sociocultural e histórica apresenta problemas e soluções para o país e para o mundo. Para Bolsonaro, a Amazônia é apenas um lado não-desenvolvido e remoto do Brasil, que só conta em seus pronunciamentos como “lugar de índios, quilombolas e caboclos” ignorantes. Lugar esse que deve ceder lugar ao progresso pela derrubada da floresta, ao avanço do agronegócio para abertura aos investidores estrangeiros. Essa perspectiva ignora milênios de adaptabilidade de povos e nações assim reconhecidas pelas organizações multilaterais do lado solidário do mundo. Ignora o pensamento científico sobre a região. Ignora a resistência e resiliência das culturas do Trópico Úmido. Ignora que a Floresta Amazônica é constituída por nove países: Brasil, Venezuela, Colômbia, Peru, Bolívia, Equador, Suriname, Guiana e Guiana Francesa.
Ao afirmar que a “Amazônia não é nossa”, e defender a abertura da região para exploração, o candidato Bolsonaro pisa em terreno que não conhece e do qual sabe apenas generalidades. “Aquilo é vital para o mundo”, já afirmou. “A Amazônia não é nossa e é com muita tristeza que eu digo isso, mas é uma realidade e temos como explorar em parcerias essa região.”
Em encontro com empresários, Bolsonaro indicou ser favorável à exploração de riquezas na Amazônia. Segundo estimativas apresentadas no encontro, os recursos naturais na região – entre minério, petróleo e outros – estariam avaliados em até US$ 5 trilhões. Empresários que participaram informam que o evento chancelou a receptividade à ideia de “reinserir a Amazônia na pauta”. Na pauta também de visíveis interesses predatórios!
A exploração econômica da Amazônia nos moldes propostos pelo candidato enfrenta bastante resistência em alguns setores da sociedade. No ano passado, o governo Temer tentou abrir a Renca (uma área na Amazônia concebida pelo governo militar para explorar recursos minerais e que até agora não recebeu exploração legal), mas acabou desistindo após a repercussão negativa da ideia.
Bolsonaro, que em diversas áreas externa um discurso semelhante ao do Presidente dos Estados Unidos, Donald Trump (que retirou os EUA do Pacto Global do Clima), afirmou ser desfavorável ao acordo porque o Brasil teria que “pagar um preço caro” para atender às exigências. Segundo ele, o acordo fere a soberania do país.
“O que está em jogo é a soberania nacional, porque são 136 milhões de hectares que perdemos ingerência sobre eles”, disse Bolsonaro a jornalistas. Na mesma entrevista, acrescentou: “Eu saio do Acordo de Paris se isso continuar sendo objeto. Se nossa parte for para entregar 136 milhões de hectares da Amazônia, estou fora sim.”
O Acordo de Paris foi aprovado por 195 países em 2015 e tem como uma de suas principais metas reduzir a emissão de gases do efeito estufa, de forma a evitar o aquecimento global. Os EUA, em junho deste ano, abandonaram o acordo por decisão do Presidente Trump, que havia se comprometido a retirar o país do pacto internacional durante sua campanha presidencial.
Bolsonaro, se eleito, levará ao Congresso um debate sobre a demarcação de terras indígenas e sobre a autorização para a titulação das terras e exploração comercial de áreas protegidas que são ocupadas atualmente por indígenas e quilombolas. Isso tem implicações no uso sustentável da terra pela agricultura indígena e ribeirinha da Amazônia, além de ameaçar os estilos de vidas de suas populações originárias, as mais desprotegidas do Brasil.
“Tem muita reserva superdimensionada e os índios querem fazer na terra o que os fazendeiros fazem na deles. Queremos titularizar áreas indígenas e quilombolas também”, afirmou. “No que depender de mim, lógico que tem que passar pelo Parlamento (a aprovação para exploração comercial nessas áreas)”. O modelo Bolsonaro e seus 51 deputados eleitos podem ressuscitar o antigo modelo BBB (boi, bala e bíblia) do qual a região historicamente é vítima.
É sobre este aspecto em particular que o espectro Bolsonaro-Presidente ameaça os territórios e povos amazônicos. Afirmações de pouca consistência e teor diplomático mostram que o candidato já abriu mão do direito e do dever soberano da sociedade brasileira e do Estado de assegurar a presença do Brasil no futuro da região. Está contra a Constituição Brasileira que, no artigo 255, § 4.º firma este marco regulatório fundamental para o País:
“Art. 225.Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.”
“§ 4.º A Floresta Amazônica brasileira, a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o Pantanal Mato-Grossense e a Zona Costeira são patrimônio nacional, e sua utilização far-se-á, na forma da lei, dentro de condições que assegurem a preservação do meio ambiente, inclusive quanto ao uso dos recursos naturais.”
O desconhecimento de Bolsonaro sobre o Brasil profundo ameaça os brasileiros da Bacia Amazônica que é simultaneamente brasileira e continental. A entrega da Amazônia aos interesses da exploração predatória do mundo já foi pensada pela ditadura e outros governos como pagamento da dívida externa brasileira. Foram as populações da Amazônia brasileira e continental que, ao lado da comunidade científica e de instituições nacionais esclarecidas, denunciaram o falso discurso de salvação nacional e lutaram pela integridade do território e de seus recursos para as gerações contemporâneas.
No entanto, a Amazônia configura-se uma parte do mundo contemporâneo complexa em seus componentes físicos, ambientais, sociocultural-históricos. Como bioma, ecossistema, Estados e sociedades contemporâneas ela assim pode ser sintetizada:
– A Amazônia é um complexo de ecossistemas interligados que são influentes na manutenção do equilíbrio da Terra, enquanto um sistema de vida. O desenvolvimento das ciências da natureza e da interdisciplinaridade de campos e áreas de conhecimento permite considerar a região como entidade decisiva na manutenção e na transformação da química da atmosfera, na dinâmica do ciclo hidrológico e na variação climática;
– Os ecossistemas amazônicos têm a maior biodiversidade do mundo, cujas espécies ainda não estão cientificamente conhecidas e, em sua maioria, apesar de ainda serem únicas em seu ambiente natural, estão em situação de fragilidade ou em processo de desaparecimento. A ameaça aos recursos naturais da Amazônia provém, de um lado, do desconhecimento científico e tecnológico do seu funcionamento interno, fato que interfere no manejo de sua flora, fauna e populações originárias, e das influências externas de processos naturais físico-químicos e biológicos planetários, em seus impactos locais, temporários e permanentes. Por outro lado, concorre para os prejuízos aos ecossistemas amazônicos o manejo inadequado de suas riquezas conhecidas e potenciais;
– A Amazônia constitui uma região complexa, com processos econômicos em curso de expressão mundial, composta de áreas e populações urbanas, rurais e indígenas, de ocupação secular e milenar, e de reservas de proteção ao meio ambiente de manejo tradicional e recente. É premente a necessidade de a Amazônia ser desenvolvida pelo livre exercício do aproveitamento econômico dos seus recursos naturais, com disciplinamento e condições das ações de desenvolvimento econômico-social fundamentadas na ordem institucional de seus Estados.
Bolsonaro em cadeia nacional de televisão declarou: “Queremos o fim da indústria da multa praticada pelo IBAMA e o ICMbio junto ao campo. Vamos botar um ponto final em todos os ativismos no Brasil.” Ele não falou para os sem-terra, posseiros e pequenos produtores, mas diretamente ao capital agrário do País.
Bolsonaro demonstra mais uma vez não apenas sua ignorância, mas também o próprio desrespeito pelo verdadeiro valor da Amazônia e pela importância dela na vida de seus povos indígenas e na vida dos brasileiros. Ignora que milhões de brasileiros defendem a Amazônia como um lugar onde a relação natureza e cultura é emblemática na representação do Brasil que queremos, não do Brazil conforme prega Bolsonaro — o predador. Sim, pois a conquista da Amazônia brasileira e dos países sul-americanos não deriva apenas da reprodução de colonialidades. Advém da luta política de seus povos.
Brasileiros de norte a sul, populações tradicionais, índios, quilombolas, pantaneiros, ribeirinhos, caboclos e outras denominações dos amazônidas como povos da floresta já construíram um consenso: a proteção nacional da natureza amazônica é tão importante como políticas públicas como Fome Zero e o Bolsa Família. Nesse contexto, as fake news e as redes digitais operaram como força política suplementar ao reforço do obscurantismo e fundamentalismo de ideologias raciais, preconceitos de toda ordem e ignorância sobre a sustentabilidade das políticas de proteção ambiental na Amazônia.
Ao afirmar que acabará com instituições do Estado (IBAMA e ICMbio) que cuidam do Meio Ambiente e com todo ativismo político, Bolsonaro rasga a Constituição Brasileira de 1988, que qualquer candidato a presidência deve proteger. Bolsonaro na Amazônia nos faz lembrar de velhos e novos fantasmas; traz à tona o episódio do livro O Dezoito Brumário de Luiz Bonaparte, no qual o sobrinho imitava o tio, o primeiro valendo como tragédia e o segundo como farsa. Bolsonaro na Amazônia será também tragédia do povo brasileiro sob a farsa da democracia. Bolsonaro candidato mostra-se privado até mesmo de autenticidade. Ao tomar Donald Trump como modelo, ele só incorpora e capitaneia para si mais uma farsa da História que será também, por conseguinte, tragédia do povo brasileiro na Amazônia.
Marcos Colón é Professor Assistente (TA) no Departamento de Português e Espanhol e membro do Center for Culture, History and Environment (CHE) do Nelson Institute for Environmental Studies, da Universidade de Wisconsin-Madison; é também diretor e produtor do documentário Beyond Fordlândia: An Environmental Account of Henry Ford’s Adventure in the Amazon
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico