Um piano, um microfone e um príncipe entram num estúdio

O primeiro álbum póstumo depois do desaparecimento em 2016 é Prince para iniciantes e para especialistas, regalo de todo e qualquer ouvido.

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Waring Abbott/Michael Ochs Archives/Getty Images

Onde estavas tu em Janeiro de 1983? No momento em que é editado o primeiro álbum póstumo de Prince (advinha-se uma cascata deles, como sempre acontece em artistas desta dimensão), depois da Anthology: 1995-2010 lançada em Agosto, apetece reformular a ternurenta pergunta que invariavelmente se faz a propósito do 25 de Abril de 1974. Pelo meio dos agitados 365 dias de 1983, Prince calhou de estar, num dos primeiros desse ano, sentado ao piano (um eléctrico Yamaha CP-70) com a fita a gravar, ensaiando, improvisando, testando, divertindo-se. E o facto de as faixas incluídas em Piano and a Microphone terem sido gravadas num só take e insertas numa só cassete agora encontrada no cofre da Paisley Park (e com o nome das canções escrito pelo punho do próprio músico), a editora fundada em 1985 por Prince um ano após o sucesso do álbum (e do filme) Purple Rain, pode eventualmente indiciar que, ao contrário do que tantas vezes acontece nestas coisas (perdidos e achados que se reúnem, de forma mais ou menos aleatória, tantas vezes oportunisticamente e só para fazer espremer o leite da vaca, em discos para cujo lançamento os próprios músicos nunca dariam o seu assentimento), talvez tenha existido um certo propósito de unidade e coerência na sua gravação.

Não se tratou, porém, de uma descoberta-tropeção por entre a memorabilia perdida, antes uma busca concreta de Michael Howe, o arquivista oficial do património deixado por Prince – que esclareceu já que, em vida, em nenhum momento o americano deu instruções directas aos colaboradores para que a música armazenada nunca pudesse ser editada –, por uma gravação (entre outras 8 mil cassetes…) que ele e outros especialistas sabiam de antemão existir. Pelo meio dos gigs, das festas, do amor e do sexo, dos folhos e das lantejoulas, dos aditivos e da solidão, houve esse dia (noite?) em que, num estúdio em Chanhassen (Minnesota), Prince Rogers Nelson entendeu gravar novas canções, recriar algumas já existentes e avançar esquissos de outras que talvez nunca viessem a existir (Wednesday, Cold Coffee & Cocaine e Why the Butterflies, três inéditos) – é isto que o ouvinte encontra agora neste álbum, lançado com o selo da NPG Records (igualmente fundada por Prince mas que, ao contrário da Paisley, encerrada em 1994, se dedicou exclusivamente à edição de trabalhos seus). Canções e amostras de canções, então, que integram o aguardadíssimo trabalho do americano falecido a 21 de Abril de 2016, ano durante o qual fez uma série de actuações sob a sintomática designação Piano & Microphone Tour (se a sua primeira passagem por Portugal remonta a Agosto de 1993 no Estádio Alvalade, o seu concerto-surpresa no Coliseu dos Recreios em 2013 foi, diz quem lá esteve, inolvidável). O trágico ano, também, que levou em braços David Bowie, Leonard Cohen ou George Michael, todos eles membros integrantes de uma certa e comunicante constelação da cultura pop dos anos 70 em diante. No decorrer desse febril ano de 1983, pelo meio de uma roda-viva em vésperas da sua consagração popular total com Purple Rain (1984, ladeado pelos The Revolution, com quem gravou também o aclamadíssimo Parade 1986), Prince arranjaria também tempo para um singular momento de recato, reclusão, cujo minimalista título ressoa nessa ideia de sombra, de fuga aos holofotes (sendo 1983, neste sentido, o derradeiro ano em que o encontramos antes da para-sempre-planetária fama).

Circunstância que rima com a capa do disco, Prince num magnífico, nada espectacularizado, preto e branco olhando-se ao espelho, toda uma imagética de introspecção, vertigem face-to-face, prolongada nas primeiríssimas palavras que, no silêncio absoluto, abrem o disco: “Is that my echo…?”. O doppelgänger visual (o reflexo do espelho) e sonoro (o eco), então, de um Prince sentado no camarim, blusa de padrão geométrico, gargantilha, roupa e adereços no cabide e uma porta entreaberta: também por aqui somos remetidos quer para a dimensão intima, de bastidores, do disco, e, noutro plano, para a sua dimensão sonicamente esquelética, minimal – ironicamente contrariada assim que o “monstro” (quanta ironia, da boa, em ser ele o “príncipe” e Michael Jackson o “rei”: Prince é o imperador toda a música popular americana, ponto) se senta ao piano, assim transformando, agigantando, uma disposição rudimentar (“piano e microfone”) numa espectacular performance. Um piano, um microfone, uma voz: três, a conta que Deus fez.

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Pelo meio dos agitados 365 dias de 1983, Prince calhou de estar, num dos primeiros desse ano, sentado ao piano (um eléctrico Yamaha CP-70) com a fita a gravar, ensaiando, improvisando, testando, divertindo-se ©Allen Beaulieu

Venha a nós o vosso reino

Piano and a Microphone 1983 cumpre, desde logo, uma importantíssima tarefa, a de reavivar no imaginário popular – sobretudo o das gerações mais novas, para quem Prince simbolizará, acima de tudo, uma postura e uma indumentária espampanantes, “eighties” e “fora-da-caixa” (e do armário, pois embora Prince nunca se tenha manifestado militantemente em assuntos LGBT, há uma irredutível dimensão queer, transgénero e não-normativa na sua obra) – o magnífico executante que também era. Um “omni-instrumentista” (na cover art de For You, o seu formidável LP de estreia em 1977, pode ler-se que toca os 27 instrumentos) que, ao contrário daquilo que lhe é mais imediatamente associado (o fulgor na guitarra), mostra aqui todo o seu brilhantismo ao piano, tão clássico quanto pop, tão solene como entertainer. E depois, claro está, a voz, elasticidade infinita, uma em que as questões de harmonia e afinação se eclipsam e o ouvinte se passa a concentrar, quase em exclusivo, na expressividade da interpretação, suas curvas emocionais e exuberantes derrapagens. Ou, então, nos minúsculos aspectos que favorecem a tal dimensão caseira, secretista, deste disco: as pausas, as respirações mais audíveis, os ligeiros fungares que sugerem uma eventual constipação à espreita, o “Turn the lights down” que pede ao técnico em estúdio logo a seguir à tal interrogação sobre o seu eco.

Ambas as frases pertencem a 17 Days, talvez a melhor canção do disco – originalmente o b-side do seu famosíssimo single de 1984 When Doves Cry, depois incluída na versão deluxe de Purple Rain editada em 2017 –, uma que lhe dá um arranque cheio de gás (embora, em novo recado para o “fora-de-campo”, Prince peça, subitamente e pelo meio da vozearia, “Turn the voice down a little”). Embora, como frequentemente acontece na sua música, essa “aceleração”, essa exuberância, bem conviva, na verdade, com um texto e uma toada desconsolados, chorosos, enfim, “chuvosos” (já a fazer a ponte para a futura precipitação roxa). 17 dias, então, a pão e água, pelo e osso: “Called you yesterday / You didn't answer your phone / The main drag is knowing that you probably weren't alone / So here I sit in my lonely room lookin' for my sunshine / But all I've got is two cigarettes and this broken heart of mine / So let the rain come down / Let the rain come down”. Um doce cultivar da melancolia (esse deixar-se molhar, não se abrigar) característico em Prince (mas, lá está, sempre tintado pela extravagância e o romanesco), claro, aqui comandado por um piano simultaneamente jazzístico, bluesy, pop, até, digamos, “rap” na cadência e ginga que imprimem à cabeça do ouvinte (nada que ver, portanto, com a versão original, pop-funk de muito psicadélicas teclas e guitarra). E onde aos habituais falsetes e outras variações tonais, o americano junta a utilização da voz num registo de scatting paredes meias com o de um proto-beatbox (retomado mais à frente em International Lover, faixa de longos momentos ao piano, sem voz, originalmente pertencente a 1999, LP de 1982), até por aqui se entrevendo o vanguardismo de Prince, não estivesse o próprio hip-hop a configurá-lo justamente por essa época. A fechar, a canção é ainda salpicada por umas swinguescas e insoletráveis onomatopeias, que chegam a puxar o pé do ouvinte para a pista (e, como facilmente se depreende, não é fácil consegui-lo com uma voz e um piano apenas).

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1983 foi o derradeiro ano em que encontramos Prince antes da para-sempre-planetária fama, das festas, do amor e do sexo, dos folhos e das lantejoulas Richard E. Aaron/Redferns

Já acima se falou em Purple Rain, e é uma curtíssima versão (1:26, mal chegando ao refrão, em contraste com as durações de 5 e 6 minutos de outras faixas), provavelmente um esboço da original, a que aqui podemos ouvir, com a particularidade de, na versão original, nem o piano ser tão preponderante (antes a guitarra) nem ser tocado pelo próprio Prince. Juntamente com a A Case of You e Mary Don't You Weep (famoso original de Joni Mitchell para o LP Blue, 1970, curiosamente sem qualquer linha de piano) forma-se aqui uma tríade quase indistinguível, no sentido em que saltamos de uma faixa para a outra com uma fluidez imensa, como se nenhuma pausa fosse feita entre elas e de uma só canção se tratasse. A primeira é particularmente valiosa no modo como a abordagem vocal feminina tão bem joga com a imagem andrógena cultivada por Prince (a aparência física a corresponder à performance vocal, algo que outros grandes andrógenos da música, como Bowie, nunca lograram conseguir). Por sua vez, Mary Don't You Weep (canção com história na obra de Prince, pois que, inscrita no duplo Sign o' the Times, 1987, havia sido, antes disso, profusamente trabalhada e re-trabalhada com abordagens e sonoridades distintas), canção incluída na banda-sonora do BlacKkKlansman de Spike Lee e com direito a um belo videoclip, retoma a veia menos política do que espiritual sempre presente na carreira e no coração de Prince, ressurgida nos últimos anos antes da sua morte por força dos crescentes assassinatos de cidadãos negros desarmados pela polícia (“I got a bad, bad feeling your man ain't coming home”, insiste ele, ao mesmo tempo que altera, quase por completo, a letra original) – não por acaso, Mary Don't You Weep é na, origem, um clássico cristão, tão espiritual quanto temporal, dos afro-americanos que remonta à Guerra Civil, depois reavivada nos anos 60 no calor da luta negra pelos Civil Rights.

Why the Butterflies fecha o disco com uma pergunta – ou seja, abre-o, escancara-o indefinidamente, assim selando a infinitude, a eternidade da obra de Prince, cuja franzina aparência sempre rimou com fragilidade emocional, a vulnerabilidade, tantas vezes piegas (é, provavelmente, o músico mais piegas que nunca resvalou para o mau-gosto), do menino que aqui se dirige à Mãe em busca de ajuda (não é uma súplica porque a composição melódica lhe retira angústia e adiciona serenidade). O mesmo menino que em, Cold Coffee & Cocaine, usando da rouquidão rock’n’roll, geme em estado tão cool quanto junky, desfalecimento em overdose confundido com esgazeado orgasmo (ou as duas coisas em simultâneo, elas confundem-se…). E repare-se como, aqui, as borboletas são tanto as do amor como, na verdade, umas bem mais amplas, existenciais, directamente ligadas à alma (há sempre algo de extra-sensorial ou extra-terreno nas palavras de Prince, em quem o “father” é simultaneamente pai biológico e pai dos céus): “Mama, mama, What's this strange (…) / Mama, mama, what's this shaking in me? / Mama, what's this crazy swirling around? (…) / Mama, mama, open visions in my mind (…) / Mama, where is father?” (o Ave-Maria e o Pai-Nosso, como se vê, sempre em espiritual ressonância…). Dois mil e sessenta principescos segundos: se Piano and a Microphone não é, certamente, um disco com o alcance “epistemológico” de uma descoberta (também feita no presente ano) como a de Both Directions at Once: The Lost Album, de John Coltrane, não deixa de ser uma excelente peça para a arqueologia da música popular do século XX (em nenhuma fracção de segundo soando jamais datado ou anacrónico) e, acima de tudo, um momento de bruto prazer por si só (tão genuíno como o que lhe sentimos a tocar e a cantar) – e, claro, apenas a primeira porta aberta para um inestimável repositório.