As irredutíveis aldeias gaulesas do Doclisboa
Their Own Republic ou o quotidiano banal de separatistas pró-russos, Brisseau – 251 rue Marcadet ou a truculência de um cineasta à parte, Les Grands squelettes ou os pensamentos íntimos de parisienses sortidos: eis os ovnis do concurso do Doclisboa
Poder-se-ia dizer que a montanha pariu um rato, mas não é bem o caso: o programa do Doclisboa este ano tem estado particularmente atento à questão das fronteiras difusas entre estados, à cabeça com o filme de Salomé Lamas Extinção, que questiona as identidades desencadeadas pela formação e desagregação da URSS. Por isso faz sentido mostrar o documentário russo Their Own Republic, que acompanha um batalhão da República Popular de Donetsk, uma das três regiões separatistas pró-russas em território ucraniano e considerada organização terrorista (Culturgest, segunda-feira, dia 22, às 21h30 e quinta-feira, dia 25, às 10h30, exibido com as curtas The Guest e That Summer without a Home).
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Poder-se-ia dizer que a montanha pariu um rato, mas não é bem o caso: o programa do Doclisboa este ano tem estado particularmente atento à questão das fronteiras difusas entre estados, à cabeça com o filme de Salomé Lamas Extinção, que questiona as identidades desencadeadas pela formação e desagregação da URSS. Por isso faz sentido mostrar o documentário russo Their Own Republic, que acompanha um batalhão da República Popular de Donetsk, uma das três regiões separatistas pró-russas em território ucraniano e considerada organização terrorista (Culturgest, segunda-feira, dia 22, às 21h30 e quinta-feira, dia 25, às 10h30, exibido com as curtas The Guest e That Summer without a Home).
No entanto, a minipolémica desencadeada à volta da sua presença na competição internacional do Doclisboa, denunciada pela embaixada da Ucrânia, parece-nos à vista do filme desnecessária: o filme de Aliona Polunina está menos interessado em defender um dos lados do conflito entre a Ucrânia e a Rússia do que em retratar o quotidiano de homens em guerra. Polunina filma quase só os momentos “mortos” (passe a expressão), em que se limpam armas ou caçam faisões, em que se cozinha o almoço, se recordam os camaradas desaparecidos ou se conversa sobre DJs de trance music, sempre com telemóveis e portáteis ao lado de ovelhas e lareiras. Mesmo o momento que podia ser mais politizado – a captura de um desertor – se queda pela dimensão pessoal, de gente que se conhece e que às tantas já se pergunta qual é o sentido destas escaramuças patrióticas.
O retrato deste batalhão desleixado e envelhecido, convenha-se, não é muito convincente como propaganda (e não estamos a esquecer que o filme tem financiamento estatal russo): toda esta aventura separatista surge como algo quixótico, indefinido, amplificado pela ausência de contexto, explicação ou voz-off – não percebemos exactamente nunca o que se está a passar, quem são estes soldados e contra quem lutam. E Their Own Republic fica-se por um convencionalismo que retrata, como muitos outros antes dele e sem especial arte, o rame-rame quotidiano de peões movidos num tabuleiro ao sabor de questões políticas que os transcendem. A montanha não terá parido um rato, mas acabou por chamar a atenção para um filme que de outro modo não se destacaria.
É um pouco também aquilo que sentimos ao ver Brisseau – 251 rue Marcadet (Culturgest, segunda-feira, dia 22, às 18h45, e São Jorge, quarta-feira, dia 24 às 16h45), documentário do francês Laurent Achard para a colecção de retratos de cineastas por cineastas Cinéma, de notre temps. O seu foco é Jean-Claude Brisseau, autor de Coisas Secretas, Os Anjos Exterminadores e Que o Diabo nos Carregue, um dos grandes cineastas de culto contemporâneos, inscrito numa linhagem pura e dura do cinema de autor francês que, como a aldeia de Astérix, resiste ainda e sempre ao invasor – embora, como o próprio Brisseau o diz, seja frustrante fazer filmes apenas para meia-dúzia de gatos pingados.
O filme de Achard é interessantíssimo como retrato de uma figura culta e truculenta, que questiona constantemente a tradição cultural francesa da qual se alimenta. E é ainda mais fascinante enquanto dispositivo formal, dividindo-se em dois planos fixos, únicos, dentro dos quais a passagem do tempo é dada por cross-fades. Se a segunda parte regista convencionalmente uma conversa sobre o seu cinema e a sua visão do mundo, na primeira assistimos à instalação e à preparação dessa conversa, observando o que acontece enquanto “não se está a filmar”. Mas, em última instância, Brisseau, 251 rue Marcadet (exibido em programa duplo com Antecâmara de Jorge Cramez) é um objecto de alcance especializado, que só o estatuto de culto do cineasta ergueu ao concurso principal.
Tal como Brisseau, também o francês Philippe Ramos, que salvo erro nunca viu nenhuma das quatro longas anteriores estreadas entre nós, é um daqueles segredos muito bem guardados do cinema francês. E, no entanto, para Les Grands squelettes (Culturgest, terça-feira, dia 23, às 19h e quinta-feira, dia 25 às 16h30), juntou um leque de actores de primeiríssima água – Melvil Poupaud, Jacques Nolot, Jean-François Stévenin, Denis Lavant, Alice de Lencquesaing – para uma viagem de microfoto-novelas durante um dia parisiense, à sombra da Jetée de Chris Marker. Acompanhamos os pensamentos mais íntimos de uma dúzia de parisienses no seu quotidiano, numa conjugação de voz off e fotografias pontuada por pequenos quadros em movimento, debatendo-se com o amor, o desejo, a dúvida, a morte, num pequeno mas assombroso exercício formal. Les Grands squelettes (mostrado com a curta We Are the Sons of Your Rocks) é, ao mesmo tempo, uma das melhores surpresas do riquíssimo programa do Doclisboa deste ano, mas também um filme cuja dimensão assumidamente encenada, dirigida, já do lado da ficção, faria mais sentido numa secção paralela (como a Riscos) do que numa competição virada para o cinema do real.