O outro fundador da Microsoft

Paul Allen é o menos conhecido dos dois fundadores de uma empresa que mudou o mundo. Mas foi quando se dedicou a outros projectos, depois de ter derrotado um primeiro cancro, que diz ter sido mais fiel à sua natureza.

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Kim Kulish/Corbis via Getty Images

Steve Jobs fundou a Apple com Steve Wozniack. Jimmy Wales lançou a Wikipedia com Larry Sanger. Mark Zuckerberg criou o Facebook com mais quatro colegas cujos nomes raramente são lembrados. Há muitos casos na história da tecnologia em que co-fundadores ficam na sombra do protagonista. No caso da Microsoft — uma das empresas mais importantes do último meio século e que ajudou a transformar a forma como as pessoas aprendem, trabalham, comunicam e se divertem —, o papel de fundador secundário coube a Paul Allen.

Allen foi colega de liceu de Bill Gates. Aprenderam juntos a programar no tempo em que os computadores ocupavam salas inteiras. Partilharam o entusiasmo pela nova tecnologia de microprocessadores, que prometia tornar os computadores muito mais pequenos e no tipo de aparelho que, talvez, qualquer pessoa pudesse ter em casa. Transformaram esse entusiasmo num negócio e fundaram a Microsoft quando ambos estavam na universidade. Allen foi também o sócio a quem Gates conseguiu convencer a ter apenas uma participação minoritária na empresa. E foi o amigo que se sentiu traído por Gates no momento em que teve de sair da Microsoft na sequência de um diagnóstico de cancro.

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Os dois fundadores da Microsoft rodeados de computadores, em 1981, o ano em que licenciaram o MS-DOS à IBM, um negócio que viria a tornar-se multimilionário DR

Mesmo fora da Microsoft, as acções da empresa acabaram por dar a Allen uma fortuna colossal. Usou-a para investir noutras empresas, para comprar equipas de futebol americano e de basquetebol (um desporto de que admitia ser fanático), para construir o maior avião do mundo, para financiar projectos de filantropia e para aplicar muitos milhões ao serviço de investigações científicas, da medicina e de causas ambientais — entre outras, o combate à caça ao elefante. Entrou numa lista de multimilionários que se comprometeram publicamente a doar pelo menos metade das suas fortunas. Nunca se casou, nem teve filhos, e parte da sua fortuna será agora gerida pelas fundações que criou. Allen também gostava de tocar guitarra — chegou a estar em palco ao lado de músicos profissionais e lançou um par de álbuns discretos.

Como frequentemente acontece, a morte fez esta semana com que os holofotes da imprensa se virassem para a vida de Paul Allen. Aquele que durante décadas foi o outro fundador da Microsoft morreu no dia 14, em Seattle, a cidade onde nasceu a 21 de Janeiro de 1953 e onde a Microsoft tem a sua sede. Anunciara duas semanas antes que estava a fazer tratamentos contra um linfoma não-Hodgkin, um tipo de cancro, diferente daquele que lhe tinha sido diagnosticado há mais de três décadas.

“Desde os nossos primeiros dias juntos na Escola de Lakeside, passando pela criação da Microsoft, até alguns dos nossos projectos filantrópicos ao longo dos anos, o Paul foi um verdadeiro companheiro e um amigo chegado”, escreveu Bill Gates, num comunicado. “A computação pessoal não teria existido sem ele.”

O princípio da Microsoft

Allen chegou a Harvard num fim-de-semana escuro e frio de Dezembro de 1974. Sentia-se perdido. Tinha 21 anos, um curso por concluir na modesta Washington State University, um emprego como programador informático que não lhe parecia ter muita saída, e a namorada partira poucas semanas antes para Seattle, do outro lado dos EUA, a cinco mil quilómetros de distância. “A única constante na minha vida era este aluno de Harvard chamado Bill Gates, meu parceiro de crime desde que nos conhecemos na Escola de Lakeside, quando ele estava no oitavo ano e eu, no décimo”, escreveu Allen logo nas primeiras páginas da sua autobiografia, Idea Man.

No liceu de Lakeside, os dois jovens tinham passado horas a aprender programação informática frente a um terminal. Quando naquele Inverno Allen chegou a Harvard para se encontrar com Gates, já tinham trabalhado juntos em alguns projectos de software. E foi por volta daquela altura que decidiram criar o que pode ser considerado o primeiro produto da Microsoft.

Interessados num novo computador pessoal chamado Altair, os dois amigos telefonaram para a empresa fabricante, a MITS, e disseram que tinham desenvolvido software que permitiria que outras pessoas pudessem criar os seus próprios programas para o Altair, usando uma popular linguagem de programação. Este software podia ser um trunfo para o sucesso do Altair. Mas a história era mentira e os dois não tinham ainda feito nada.

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Foram, no entanto, suficientemente convincentes para que a MITS ficasse interessada. Satisfeitos com o resultado da conversa, os dois contrataram um estudante de Matemática de Harvard e, poucos meses depois, tinham o software mais ou menos pronto. Allen, que parecia ser muito mais velho do que o franzino Gates, tinha mais hipóteses de ser levado a sério numa demonstração e foi por isso escolhido para ir à sede da MITS. Para surpresa de todos, Allen incluído, o software funcionou bem e os dois jovens conseguiram um acordo de fornecimento. O contrato referia-se aos dois programadores como “Paul Allen e Bill Gates a operar como Micro-Soft”. Allen ainda conseguiu que a MITS lhe oferecesse um emprego.

Em 1975 foi oficialmente criada a Microsoft. Gates usou os argumentos de que Allen já tinha o salário da MITS e que trabalhara menos no software da Microsoft para defender que o sócio deveria ter uma participação minoritária na empresa. Allen acabou por concordar. A empresa foi crescendo nos anos seguintes e nenhum dos dois regressou à universidade. Mas o momento de viragem surgiu uns cinco anos mais tarde — e novamente com a promessa de um produto ainda inexistente.

Quando quis arrancar com o seu projecto de criar o PC, em 1980, a IBM começou à procura de quem fornecesse software. Uma das empresas a cujas portas bateram foi a Microsoft, que nesta altura já tinha uns 35 funcionários. Acabaram por chegar a acordo para que a Microsoft vendesse software à IBM, incluindo um sistema operativo. A Microsoft não tinha nenhum para vender, mas Allen conhecia um programador que criara um sistema obscuro chamado QDOS. Sem dizer que o objectivo era revendê-lo à IBM, a Microsoft comprou o QDOS por 50 mil dólares. O sistema viria a ser transformado no popular MS-DOS, que equipou milhões de computadores, da IBM e de muitas outras marcas.

O segundo acto

Em 1982, Allen estava numa viagem de trabalho na Europa quando notou algo estranho no pescoço. Regressou aos EUA e foi ao médico, que lhe diagnosticou um cancro. O prognóstico não era mau, mas era melhor que Allen deixasse o trabalho na Microsoft e se dedicasse aos tratamentos.

O que se seguiu foi contado de formas diferentes anos depois, incluindo por Gates e Allen, deixando no ar se se tratou de uma separação amigável ou de uma traição.

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Bill Gates e Paul Allen durante um jogo de NBA entre os Seattle SuperSonics e os Portland Trailblazers, em 200 Anthony P. Bolante/Reuters

Na sua biografia, Allen conta que ouviu então uma conversa entre Gates e Steve Ballmer, que fora contratado para ser responsável pela componente de negócio da Microsoft e que mais tarde viria a presidir à empresa. Os dois estariam a planear diluir a participação de Allen, emitindo novas acções para eles próprios e para outros accionistas. “Eu tinha ajudado a lançar a empresa e ainda era um membro activo da equipa de gestão, apesar de limitado pela minha doença, e agora o meu sócio e o meu colega estavam a conspirar para me roubar. Era oportunismo mercenário, puro e simples”, escreveu Allen, que diz que os confrontou naquele momento.

Gates já negou esta versão dos acontecimentos. Mas, na altura, tanto Gates como Ballmer acabaram por lhe pedir desculpas. “Durante os últimos 14 anos, discordámos muitas vezes. Contudo, duvido de que dois sócios alguma vez tenham concordado tanto, seja no que diz respeito a decisões específicas, seja sobre a visão geral das coisas”, escreveu então Gates, numa carta a Allen. “Paul, às vezes sinto que me estás a dizer que eu sou um mau tipo, ou que a empresa é má. Às vezes sinto que não percebes o esforço que foi posto nesta empresa.”

Allen afastou-se. Acabou por curar-se do cancro, ao fim de vários meses de radioterapia. E nunca mais regressou ao dia-a-dia da Microsoft. Em 1986, quando Allen tinha 33 anos, a Microsoft entrou em bolsa, tornando os fundadores e alguns dos primeiros funcionários incrivelmente ricos.

Com a fortuna, Allen dedicou-se a muitos outros interesses para além do software. Logo em 1988, comprou uma equipa da NBA, os Portland Trail Blazers. Em 1996, tornou-se dono da equipa de futebol americano Seattle Seahawks, que ganhou várias supertaças e campeonatos. Em parceria com a irmã, fundou a produtora Vulcan, responsável por muitas séries e documentários. Também criou o Instituto Allen para as Ciências do Cérebro e um outro para o desenvolvimento de inteligência artificial. Dividiu-se por múltiplos projectos filantrópicos, desde o combate a doenças até causas ambientais. Também comprou um enorme iate, com que costumava ir ao festival de cinema de Cannes. Allen abria as portas do navio para festas com celebridades, durante as quais subia ao palco para dedilhar a guitarra (há vídeos no Instagram). Como tantos de uma geração que cresceu na corrida ao espaço e viu astronautas a pousarem na Lua, Allen era um entusiasta da exploração espacial. Financiou o fabrico do maior avião do mundo, concebido para colocar satélites em órbita.

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Allen era dono dos Seattle Seahawks. Na fotografia, antes de um jogo da sua equipa no Super Bowl XLVIII contra os Denver Broncos, em Fevereiro de 2014 Mark J. Rebilas/Reuters

“Se há alguma ironia na minha vida, é que o meu tempo na Microsoft foi atipicamente monodimensional. (...) Segui durante oito anos focado no objectivo único de fazer da Microsoft a líder da revolução dos computadores pessoais. E aconteceu, muito para lá do que eu poderia ter esperado ou antecipado”, escreveu Allen em Idea Man, publicado em 2011. “Depois de deixar a Microsoft, a riqueza que tinha ajudado a criar ali — e o então crescimento explosivo da empresa — libertou-me para voltar ao ponto que tinha deixado. Às vezes, alarguei demasiado a minha rede. Mas a escolha dos projectos não foi arbitrária. Muitos criaram raízes há muito tempo, na minha juventude. Nos últimos 27 anos, pude fazer coisas que antes só imaginava. Metade da minha vida foi agora vivida pós-Microsoft. O que lá fizemos será sempre um motivo de orgulho. Mas o meu segundo acto, em toda a diversidade e variedade, é mais fiel à minha natureza.”