O #MeToo também deu voz às “posições mais conservadoras” sobre sexualidade

Gabriela Moita, psicóloga clínica e terapeuta sexual, aponta o risco de a transformação social em curso quanto à violência sexual também poder fazer emergir posições mais conservadoras relativamente ao comportamento da mulher.

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Nelson Garrido

Um ano depois do aparecimento do #MeToo, a psicóloga clínica Gabriela Moita considera que a primeira vitória já foi conquistada: redobrou-se a vigilância sobre a forma como os tribunais julgam a violência sexual contra as mulheres e a censura generalizada de acórdãos como o que condescendeu com a violação de uma mulher inconsciente num bar em Gaia. Para a terapeuta sexual, doutorada com um trabalho sobre homossexualidade, orientação sexual e construção da identidade, a verdadeira transformação social dar-se-á quando os homens começarem, também eles, a questionar o poder que lhes é imposto. Com anos de prática no atendimento a vítimas de violência sexual, a psicóloga garante: na génese, não há muitas diferenças entre a violação e o simples piropo na rua, porque o que sai lesado em ambos é o direito da pessoa a não ser invadida.

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Um ano depois do aparecimento do #MeToo, a psicóloga clínica Gabriela Moita considera que a primeira vitória já foi conquistada: redobrou-se a vigilância sobre a forma como os tribunais julgam a violência sexual contra as mulheres e a censura generalizada de acórdãos como o que condescendeu com a violação de uma mulher inconsciente num bar em Gaia. Para a terapeuta sexual, doutorada com um trabalho sobre homossexualidade, orientação sexual e construção da identidade, a verdadeira transformação social dar-se-á quando os homens começarem, também eles, a questionar o poder que lhes é imposto. Com anos de prática no atendimento a vítimas de violência sexual, a psicóloga garante: na génese, não há muitas diferenças entre a violação e o simples piropo na rua, porque o que sai lesado em ambos é o direito da pessoa a não ser invadida.

Que leitura faz ao que parece ser uma reacção generalizada de rejeição da legitimidade da queixa? Nos comentários às notícias e nas redes sociais é preponderante o tom de ‘lá estão estas oportunistas…'”.
Há um lado que faz isso. O que acho importante dizer-se é que, de facto, temos dois tipos de vítimas: temos as vítimas dos abusos — e é preciso cuidar delas — e temos as vítimas de falsas acusações que o são porque são figuras que têm alguma importância ou porque há algum interesse em acusá-las. Estes dois tipos de vítimas existem e umas não podem ser sombra das outras. O que sinto com este extremar de posições é que parece que, porque existem umas vítimas, essas vão fazer ocultação das outras. Não. São dois tipos de vítimas e dois tipos de agressão. Porque estar a acusar uma pessoa de uma coisa que ela não fez é altamente destruidor. E é preciso ter isso em conta. Mas não pode nenhuma destas agressões ser anulada por causa da outra. As vítimas dos abusos precisam de voz e precisam de fazer queixa e as vítimas de uma condenação injustificada precisam de voz e precisam de fazer queixa.

Um ano depois do aparecimento do #MeToo, passada a efervescência inicial, o que acha que vai ficar relativamente à forma como a sociedade se posiciona em relação às mulheres e também na forma como as próprias mulheres se posicionam na sociedade?
Vai ficar evidenciada a necessidade — e não só por causa do #MeToo — de não poder voltar a acontecer o que aconteceu com julgamentos como o da mulher que foi vítima de abuso enquanto estava inconsciente num bar [em Gaia]. Todos — e não só aquela mulher — nos sentimos agredidos quando ouvimos a sentença [que mantém fora da prisão os autores da violação, considerando que “a ilicitude" do que fizeram "não é elevada”]. Isto obrigará a que este tipo de negligência — e digo negligência porque parte da instância do Estado que tem a obrigação de cuidar de todas as vítimas — deixe de ser aceite. E, portanto, a instância que tem como obrigação dar segurança a todos os cidadãos, já está a ser muito mais vigiada. E creio que sairão daqui muito mais espaços apoiados de apoio à vítima de violência sexual.

As mulheres que historicamente foram secundarizadas, nomeadamente no direito a ter voz sobre o seu corpo, estão a declarar-se vítimas para deixarem de o ser. Não vê aqui uma contradição?
Todas as categorias de identidade (“sou mulher”, “sou homossexual”, “sou transexual”) discriminadas socialmente, para existirem, têm primeiro de denunciar o seu lugar de exclusão. E só depois podem vir para o centro e sair desse lugar. Mas foi necessário este lugar de grito. O grito e a reclamação dão existência às mulheres. As mulheres não existiam.

Ao mesmo tempo que se unem na defesa da mulher, as sociedades estão a eleger políticos que se equiparam, entre outros aspectos, por se pronunciarem acintosamente em relação às mulheres, como Trump e, eventualmente, Bolsonaro. Como é que isto coexiste?
Num momento em que há um movimento que tem em si a possibilidade de transformação da organização social, os movimentos de manutenção do sistema também aparecem fortemente. Isto do ponto de vista da teoria sistémica pode ser lido desta forma. Quando o equilíbrio fica ameaçado com esta reivindicação de atribuição de poder também às mulheres, claro que as forças que não querem a mudança também aparecem fortemente. É o backlash. Mas nunca mais isto vai ficar igual.

Mantém-se optimista quanto ao depois?
Não podemos deixar de nos manter. Tenho pena das novas gerações, porque nós passámos, da época do pós-guerra até hoje, por um movimento que foi de ganho e de liberdade. E agora vêm estas forças todas que querem retirar a liberdade, com medo que isto vá ao caos. Com medo do lugar onde a liberdade nos levaria. Isto pode trazer momentos difíceis. Mas há conquistas que já nunca mais voltam atrás.

A revista The Economist publicou há dias uma sondagem que mostra que, num ano, a opinião pública norte-americana se virou contra as vítimas e se tornou mais céptica quanto ao assédio sexual.
Como é que é possível as pessoas posicionarem-se contra as vítimas?

Serão as mesmas pessoas que acham que a mulher que subiu com Ronaldo ao quarto perdeu o direito de dizer ‘não’?
Mas isto não pode ser julgado em praça pública. É preciso todo o respeito em relação aos dois lados, nomeadamente em relação às mulheres que apresentam a queixa. Quando isso não acontece, é violentíssimo. As pessoas ficam muito surpreendidas com o silêncio das vítimas. Mas porque é que as mulheres silenciam? Está aqui à mostra porquê: então se no momento em que a pessoa se queixa a primeira grande questão é achar que ela não está a dizer a verdade! Isto não pode acontecer.

Mas acontece: há dias Christine Ford, que se declarou vítima da tentativa de violação do juiz norte-americano Brett Kavanaugh, contou que recebeu até ameaças de morte que a forçaram a sair de casa com a família.
Mais uma vez, é preciso proteger as vítimas. Perante qualquer pessoa que se queixe de um ataque, a primeira grande questão não pode ser excluí-la e considerar que ela não tem razão. O ser humano é violento e o que está a acontecer é de uma violência desmedida. Estão a atacar uma pessoa por ela vir queixar-se de um abuso que lhe aconteceu? Antes de saber se aquilo aconteceu ou não aconteceu? Há hipótese que aquilo não tenha acontecido? Está bem, vamos ver. Mas há a hipótese de ter acontecido. Portanto, tem que haver uma neutralidade à partida. E os casos têm de ser investigados e julgados no sítio certo. Esta falta de neutralidade, estas condenações, mesmo que só sociais, das vítimas é violentar pessoas que já foram violentadas. Isto vai trazer ainda mais silêncio. Uma mulher ou um homem que tenham sido violados por uma personalidade pública vão ter muito mais dificuldade em dizê-lo porque até há um movimento que diz que se se manteve na empresa ou se aceitou o papel, esteve a obter lucro. Isto é a parte má.

O risco de estarmos a criar novas vítimas à conta das falsas acusações não retira força a este movimento de denúncia?
Não pode. Até acho que estar a falar disto visa ocultar, impedir que se fale das questões. Porque a possibilidade de acusar alguém de qualquer coisa que essa pessoa não fez sempre existiu e nas mais diversas áreas. Isso passou-se noutros campos de identificação de vítimas. Na homossexualidade, seguramente. No final do século XVIII, o vizinho roubava não sei o quê e quem o queria meter na cadeia acusava-o de ser homossexual. Agora, se o tema é o das vítimas de abusos sexuais este é o tema também das novas vítimas das falsas acusações. E o facto de se estar a dar muita atenção à história dos abusos e dos maltratos, onde cabe o abuso sexual, é relativamente recente. Bem como a emergência desta nova categoria social, o grupo das pessoas que são vítimas de abusos sexuais.

A primeira ideia de maltratos vem muito dos países anglo-saxónicos, particularmente de Inglaterra, porque os pais não tinham responsabilidade nenhuma: se abandonavam os filhos punham na roda e alguém que cuidasse deles. Se ficassem órfãos, ficavam. O Estado não tinha obrigação de cuidar deles. Esta ideia de que o Estado tem obrigação de cuidar vem dos direitos. Isto tem tudo a ver com direitos e os direitos são recentes. Estamos a falar de direitos humanos e quando começamos a falar de direitos humanos passamos a falar do direito de ser protegido de todas as agressões e esta é uma delas.

Um argumento vulgarmente apontado é que uma falsa acusação lesa a reputação do visado de forma irreparável.
Da mesma maneira que pode ser irrecuperável o mal que, se for verdade, foi provocado. Se uma pessoa acusada for, afinal, inocente, isso pode ser destruidor e não podemos minimizar este aspecto, mas não pode ser uma coisa que nos leve a silenciar o problema. Porque esta questão do silenciar também é silenciar as mulheres, silenciar a sexualidade, é desvalorizar comportamentos de abuso. Isto é uma oportunidade excepcional para que as posições mais conservadoras em relação à sexualidade apareçam. O centro de tensão deixou de ser se a mulher foi violada ou não e começa a ser o que é que as mulheres fazem até um determinado momento. Com o #MeToo estão a aparecer também os comportamentos rigidificadores da mulher. Acho que a grande transformação social vai ser quando a denúncia vier de dentro do lugar do poder que existe neste momento que é o lugar dos homens. Não necessariamente porque eles queiram, mas porque é assim que está atribuído socialmente, e quando os que estão lá dentro mostrarem a forma como são vítimas e também começarem a questionar esse lugar de poder que lhes é imposto de alguma forma e que muitos nem sequer querem usar...

Homens a queixaram-se também de intimidação e violência sexual?
E da agressão a que são sujeitos diariamente só porque são rapazes e não gostam de jogar futebol, porque são rapazes e não fazem o que é suposto os rapazes fazerem. E são desconsiderados, agredidos fisicamente, emocionalmente, cognitivamente. Até aqui silenciavam, mas isso agora começa a aparecer.

Não há uma certa confusão instalada na discussão pública entre coisas que são diferentes? Mistura-se aqui violação com o assédio e com o piropo que se ouve na rua…
Porque há qualquer coisa que é comum a isto tudo: é o lugar de poder de quem faz isto. Nada disto deve ser permitido e tudo isto é grave porque é invadir o outro. E do que se trata aqui é de reclamar o direito a não ser invadido, o direito a ser protegido. E isto é igual em todas estas situações. Por isso é que falar de qualquer uma destas coisas é falar da mesma coisa. Do poder que uns seres – normalmente, e quando falamos de questões de género, os homens – têm de fazer todas estas coisas a outros seres.

A diferenciação há-de fazer-se depois no sancionamento que é feito de cada um desses comportamentos?
Exacto. Mas isso já é outra coisa. Isto de não poder acontecer coloca-se ao mesmo nível. É tão grave uma coisa como a outra, no sentido em que é violação do direito da outra pessoa a não ser incomodada.