“Nós, os portugueses, somos óptimos”

Um mês antes de Mário Soares morrer, Vasco Pulido Valente fez-lhe um telefonema “sentimental e delicodoce”: disse ao homem que na sua opinião foi a grande figura da história portuguesa desde as Invasões Francesas que gostava muito dele. O historiador prevê que Bolsonaro possa acabar com o Estado federal brasileiro, diz que as ciências sociais são “uma fraude” e que hoje “não há direita em Portugal”.

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Vasco Pulido Valente anda a reler A Educação Sentimental, de Flaubert. Interessa-lhe agora perceber o que é que Eça de Queiroz foi ali beber para escrever Os Maias. Na sua casa perto da Praça de Londres, em Lisboa, continua um observador implacável e surpreendente do mundo em que vive. Vasco Pulido Valente não acredita no mito da falta de auto-estima nacional: os mil anos de história deram-nos uma segurança imbatível. E também os Descobrimentos. Por ele, o famoso museu até se podia chamar “museu do mundo português”, a fazer lembrar a exposição do Estado Novo, de que António Ferro foi secretário-geral.

Encontrou no fundo da gaveta dois ensaios de história de Portugal. Há no fundo dessa gaveta algum texto jornalístico perdido?
Não, não há.

Tudo que escreveu para jornais acabou por ser publicado em livro?
Eu sempre trabalhei muito bem por encomenda.

Escrever bem é fundamental para o jornalismo e para a história?
Com certeza, a história é um género literário, não é uma ciência. O resto que a academia acha que são ciências — a sociologia, as ciências políticas e sobretudo as relações internacionais —são fraudes, pura e simplesmente.

Essa opinião a academia não gosta de ouvir. Acha que não há uma objectividade na história, pelo menos uma procura da objectividade?
Há história bem fundamentada em documentos de vária ordem. Até há ficção romanesca. Estávamos há bocado a falar de A Educação Sentimental [de Gustave Flaubert] — é um documento histórico, tanto sobre a época em que se passa, como sobre a época em que foi escrito. Mais sobre a época em que foi escrito, claro. Depois há a história fantasiosa, inventada e isso não é história. E depois há a história que finge que é científica e não é. E que produziu uma data de história que não serve de nada a ninguém.

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Dê-nos exemplos dessa história que não serve de nada a ninguém?
O [Fernand] Braudel, quase todo. 

Gramática das Civilizações não é um livro interessante, o Mediterrâneo [O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrânico na Época de Filipe II] não é interessante?
Mediterrâneo é vagamente interessante, mas muito pouco esclarecedor. Quer dizer, é uma curiosidade. Foi um mal-entendido que produziu uma história inútil. 

Quem é que na historiografia portuguesa escreve bem?
O Rui Ramos não escreve mal. Escreve bem.

Não se lembra de mais nenhum?
Não me lembro de mais nenhum. Não li nenhum livro interessante [de historiadores portugueses] e tenho lido livros que são como o Marcelo — implausíveis. Lê-se e não se acredita. Com o Marcelo vê-se e não se acredita. 

Que livros implausíveis são esses?
Há uma História da Europa, soi disant, sob o ponto de vista da classe operária escrita pela Raquel Varela. Nunca vi tanta ignorância junta. É um abismo de ignorância, não só sobre a história da Europa entre 1914 e 1945, como sobre a história da classe operária que ela não conhece. Isto mostra como está a sociedade portuguesa.

Está pior que em 1950, 1960?
Não. A universidade do salazarismo era um pesadelo. Esta não é um pesadelo, é só inacreditável. A outra pesava e era moralmente desprezível. Só os filhos dos privilegiados podiam lá chegar, ninguém mais lá entrava. Quando eu entrei para a universidade, em todas as universidades portuguesas havia 6000 alunos.

Estamos a falar de...
1958. Calcule, seis mil alunos! Há escolas secundárias que têm 3 mil e universidades do interior que têm 6 mil. Era moralmente vergonhoso, académica e absolutamente nulo, embora aquela gente se desse ares de grande importância. Não houve uma pessoa que tivesse deixado obra.

Não houve um professor que lhe tenha deixado saudades, ou o tenha inspirado?
O padre Manuel Antunes deixou-me algumas saudades, mais pela pessoa que era do que pelo que me ensinou. O meu grande professor foi o Osvald Market, em filosofia, que era espanhol. Era um professor da Universidade Complutense [de Madrid] que tinha lá alguns conflitos com as autoridades franquistas e veio para Portugal e obrigou-nos a saber algumas coisas de filosofia.

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Quando foi para Inglaterra em 1968 notou uma grande diferença, uma mudança total?
Fiquei absolutamente estupefacto. O primeiro ano que passei em Inglaterra passei-o a estudar 14 horas por dia. Fui conversar com o meu supervisor e dizia “eu não sei isto”. E com toda a calma o meu supervisor dizia “não sabe, mas tem que saber”. E depois eram os colegas. Conversavam uns com os outros e eu às vezes não percebia do que eles estavam a falar. 

Por isso tinha que estudar mais que eles para os acompanhar?
Ficava envergonhado de não saber. Uma vez estavam a falar todos entusiasmados que tinham saído as memórias do Alexandre Herzen...

Quem?
Era um emigrado russo que era casado com uma senhora chamada Natalie Herzen. Foi um dos primeiros grandes escândalos públicos porque se separaram, ela arranjou um amante e ele continuou amigo dela, etc. Era um grande homem do romantismo, pelo seu comportamento. Era filho bastardo de um grande potentado russo, muito rico, tinha uma grande casa em Londres e recebia toda a gente que fugia da Rússia, vinha o Bakunine, vinha o [Georg] Herwegh que foi quem fugiu com a Natalie. Ele fez um jornal que imprimia em Londres e que depois entrava na Rússia clandestinamente. Era um jornal de oposição ao czarismo, chamava-se Kolokol — o sino. E o Lenine copiou o jornal dele. 

Isto no final do século XIX...
Eles fugiram da Rússia em 1848. E as memórias que tinham sido publicadas — e foram agora republicadas — eram extraordinárias. É um grande livro, uma das grandes memórias que se escreveram no mundo. 

E então ouvia os seus colegas a falar das memórias...
Sim, ouvíamos a falar das memórias do Herzen e eu não sabia quem era. 

Já tinha 30 anos na altura?
Tinha 27 e alguns deles eram mais novos do que eu. E não percebia metade da conversa, eles explicavam-me, eu ia para casa, ia comprar os livros, ia ler. Fiz isso durante os cinco anos em Oxford. Lia, lia, lia.

Como foi crescer em ditadura?
O pior foi a universidade. Durante o liceu, sabe como é... Naquele período da adolescência difícil as pessoas estavam completamente absorvidas por si. Eu era um privilegiado, cá em casa comiam-se bifes com batatas fritas. Eu vivia nesta casa onde vivo hoje [perto da Praça de Londres, em Lisboa]. Eu não tinha frio, comprava os jornais, o Cavaleiro Andante, o Mundo de Aventuras. Não senti muito a ditadura. Sabia que havia uma ditadura, pelos meus pais, pela minha família, pelos amigos dos meus pais que eram contra a ditadura. O escritor Manuel Mendes, que toda a gente já esqueceu. 

Era amigo dos seus amigos, o Manuel Mendes?
Sim, era um grande homem da oposição. Tinha feito contrabando de armas para Espanha durante a Guerra Civil, com muita coragem. E depois, quando aconteceu a derrota, fez uma operação clandestina em que salvou muitas pessoas. O Fernando Lopes-Graça era outro amigo da casa. O Graça é padrinho da minha irmã. Vinha também o Mário Dionísio e a Maria Letícia, de quem eu gostava muito. Naturalmente, eu fui absorvendo, mas, como calcula, aos 13 anos eu estava muito mais preocupado comigo do que com o mundo. 

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Teve uma adolescência difícil? São todas...
As adolescências são todas difíceis. Eu tive uma adolescência particularmente difícil porque tinha muitos conflitos com a minha mãe. E acabei por ir para colégios internos, um que era quase um presídio, que era o Colégio Nuno Álvares, em Tomar. 

Mas era muito rebelde?
Tinha conflitos com a minha mãe, não quero entrar em pormenores. Era incompatível com a minha mãe. Fui para o Nuno Álvares e fiz lá o exame do 5.º ano e depois fui interno para o Colégio Moderno, ali para o Campo Grande, até acabar o 7.º ano. 

Que era muito melhor que o de Tomar?
Ah, era muito melhor e muito mais indisciplinado. Basta dizer que era dirigido pelo dr. Mário Soares.

Foi aí que conheceu Mário Soares?
Não, eu conheci o dr. Mário Soares quando tinha quatro anos.

Na prisão, claro.
Pois. Uma das memórias mais antigas que eu tenho, é da cara dele a rir-se e a cara do meu tio [Fernando Pulido Valente] ao lado dele tétrica. E eu gostava do dr. Soares e não gostava do meu tio, claro [risos]. O dr. Mário Soares era amigo dos meus pais. O meu pai trabalhava no Norte e tinha uma casa por onde passavam os oposicionistas. Era uma casa grande, com vários quartos. Depois a empresa mudou-se cá para baixo. E eu lembro-me perfeitamente do dr. Mário Soares a almoçar lá em casa. A casa tinha aquela vinha...

De ramada...
Lembro-me dele com a sombra das folhas na cara. Devo ter achado aquilo bonito...

E como era a juventude em Lisboa nos anos 70? Era divertida ou o ambiente era bafiento como o regime?
Era bafientíssimo. Quando me casei, os meus poderes sobre a minha mulher eram extraordinários. A gente ria-se disso, claro. Não levávamos isso a sério. Ela não podia viajar sem a minha assinatura e se ela fugisse de casa eu podia dizer à polícia para a prenderem e ma entregarem. Era uma figura jurídica chamada “devolução do corpo”. Era uma coisa horrível. Quando eu cheguei à juventude já havia pouca gente que fosse fervorosamente salazarista, aquilo já durava há muito tempo, já tinha havido a II Guerra Mundial, o grande desenvolvimento económico dos anos 50 que foi uma coisa extraordinária, mas não mudou o regime e depois foi canalizado para o esforço de guerra. Sabíamos o que se passava em Paris, muito vagamente. Mas sabíamos que existia a Brigitte Bardot e havia filmes do [Roger] Vadim. Passavam aqui alguns. 

Por que é que escolheu o século XIX como historiador? Embora O Poder e o Povo seja sobre a República.
Os livros de história não são sobre a República, nem sobre isto nem sobre aquilo. São sobre o problema. O problema ali era compreender por que processo tinha havido durante pelo menos oito anos de República um terrorismo de massa. Como é que havia um regime que podia ser sustentado por um terrorismo de massa. Esse é que é o problema. E aquele era um bom período para eu poder examinar aquele problema. 

Os velhos republicanos e quem lhes sucedeu continuam a não aceitar que a Carbonária era uma organização terrorista.
A Carbonária teve muitos nomes. Houve muitas carbonárias. A Carbonária pós-revolucionária não é igual à Carbonária revolucionária do Machado Santos. A Carbonária que fez a República esteve sempre contra aquela República. E depois houve outras organizações, algumas fluidas, outras mais rígidas, com comando, que dominaram o país durante muito tempo e foram exportadas de Lisboa para Trás-os-Montes, para Chaves, para o Minho... O dr. Mário Soares ficou muito ofendido quando leu a história da República Velha. Ele leu antes da publicação, eu andava com aquilo na mão e ele estava com curiosidade e emprestei-lhe. Ele leu aquilo e ficou furioso. Mas muito tempo depois, em casa dele, disse-me: “Talvez tenhas razão. Eu não sou o Afonso Costa da República, sou o António José de Almeida”.

E subscreve essa leitura?
Não, ele foi muito melhor que o António José de Almeida, que era um pobre pateta. O Mário Soares era um grande homem. 

Houve alguém na Revolução de Abril que quis ser o Afonso Costa da República?
O Cunhal foi o Afonso Costa.

Não chegou a ser porque não chegou ao poder...
Se não tivesse perdido o 25 de Novembro tinha havido terrorismo em Portugal.

Acha mesmo que Mário Soares é a grande figura nacional?
É a grande figura da História Portuguesa Moderna. Parágrafo.

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Está a falar do século XX...
Não, da História desde as invasões francesas, do século XIX e século XX.

Porque diz isso?
Porque foi ele que fez a democracia portuguesa. E não fez só, como as pessoas normalmente acham, no PREC [Processo Revolucionário em Curso, anos 1974-75] contra os pseudo-revolucionários. Fez também depois contra o [Ramalho] Eanes e o partido populista e militarista que se chamava PRD [Partido Renovador Democrático]. Ele nunca perdeu isso de vista, teve sempre a noção do que era necessário à democracia portuguesa. Mesmo ao Sá Carneiro fez uma oposição com meio-coração. Ele percebia que aquilo era necessário. Não gostava, mas percebia que aquela coisa precisava de ser feita. A direita precisava de ir legalmente para o poder. Era a maneira do regime se nacionalizar. Toda a gente podia governar a partir dali. Não haveria razão para fazer golpes de espécie nenhuma, de usar meios de violência ou extra-constitucionais contra o regime. Ele próprio não usou. Dali em diante fez tudo constitucionalmente. 

Foram muito amigos, mas tiveram grandes zangas...
Fomos amigos? 

O dr. Mário Soares gostava de si...
Eu não era amigo do dr. Soares. O dr. Soares fazia o favor de gostar de mim... às vezes. Às vezes gostava de mim.

Ele confiava em si.
Confiava. E quando ele morreu estávamos em muito bons termos. Um mês antes dele morrer fiz-lhe um telefonema sentimental e delicodoce em que lhe disse que gostava muito dele. Mas dizer ‘amigos’ é excessivo. Amigos implica uma relação de igualdade que eu nunca tive com o dr. Soares. O dr. Soares não me ligava muito. 

Não lhe ligava muito?
Não, não ligava muito. Eu não era importante na vida do dr. Soares, nem na vida política, nem na vida pessoal. Quando eu aparecia por qualquer razão, ou quando ele queria falar comigo por qualquer razão, encontrávamo-nos em casa de amigos comuns. Nós gostávamos de falar, ele era muito simpático comigo. Quando trabalhei com ele, tratava-me como se eu fosse sobrinho dele, ou seja, mal. Muito mal. E era assim. Eu não era amigo do dr. Soares, quanto muito o dr. Soares fazia o favor de ser meu amigo. Tem que se resistir a esta tendência que as pessoas velhas têm de ampliar o seu papel no mundo. 

Então o problema de O Poder e o Povo não está presente na sociedade portuguesa contemporânea. E o poder de Os Devoristas continua?
O problema de Os Devoristas também não e nunca foi. O dr. Álvaro Cunhal e a gente que nacionalizou a economia portuguesa depois do 11 de Março não estavam à espera de viver daquelas empresas. O dr. Cunhal não queria ser dono da Siderurgia [Nacional]. 

Mas nas privatizações não houve um pouco a repetição desse problema [do ‘devorismo’ da classe política liberal que em 1834-36 se apossou dos bens desamortizados da Igreja]?
Eu tinha amigos comunistas naquela altura e sempre lhes disse que eles estavam equivocados. As pessoas que administravam aquelas empresas que eles andavam a nacionalizar — e que eles tinham que deixar no lugar porque não tinham outras — não eram comunistas nem nunca seriam. Sempre lhes disse que se pensassem em quem viria a gerir o país se houvesse comunismo olhassem para aquela gente, que viraria a casaca como viraram muitíssimos. Viravam a casaca com a mesma tranquilidade quer fosse o Partido Comunista ou o Champalimaud ou o Mello a mandar naquilo. Eram administradores.

Eram oportunistas?
Eram uma classe social necessária. Nos anos 50 e nos anos 60 a nossa economia já se tinha desenvolvido o suficiente para ter uma Siderurgia. Nós não éramos Cuba, aquele deserto com dois casebres e umas fábricas de tabaco, de charutos. Tínhamos que exportar para a Europa, importar. Eles tinham que deixar aquela gente onde estava. Aliás, muita dela ficou contente porque não gostava dos patrões. Houve sujeitos desses, administradores de bancos, da CUF que em conversas, em jantares, em reuniões, começaram a expelir a gramática elementar do Partido Comunista Português.

Acha que em Portugal aconteceu em grande escala?
Perto de mim aconteceu em grande escala. Nos meus amigos, na minha geração aconteceu em grande escala. Houve uma submissão intelectual à cartilha do PCP.

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Mas foi em 74-75, também acabou rapidamente…
74, 75, 76, 77. Quando fui para o Governo de Sá Carneiro, amigos meus encontravam-me na rua e chamavam-me fascista. E também me chamavam fascista nos jornais. Foram anos e anos. Quando eu fui secretário de Estado da Cultura, fui informado pelos serviços que havia muitos roubos. Era um prédio na Avenida da República, que tinha garagem no subterrâneo. Havia pessoas que saiam mais tarde, esperavam que não estivesse ninguém no prédio e levavam tudo o que lhes apetecia, candeeiros, móveis, máquinas de filmar, tudo. Depois metiam nas bagageiras dos automóveis e levavam para casa. E eu contratei uma dessas empresas de segurança, que puseram à porta dois guardas para revistar os automóveis. Eles tiraram fotografias aos guardas com o seguinte título: “As SS na Cultura”. Este ambiente durou até muito tarde.

Até aos anos 80?
Até aos anos 90. Sobretudo na Universidade, o Partido Comunista era uma boa máquina de promoção de pessoas. Tratava bem os seus, passou a tratar bem a extrema-esquerda e, como eles diziam, definir quem era o inimigo, as pessoas que não deviam ser promovidas. Quando o Instituto começou [ICS, Instituto de Ciências Sociais] eu era a pessoa mais graduada. Havia só dois doutorados, eu e a Maria Filomena Mónica. Eu era o mais antigo.

O ICS começa em que ano?
Durante o Governo Balsemão. E passaram-me à frente não sei quantos...

Mas não havia maneira de contestar isso?
Essas coisas não se contestam. São impalpáveis. E depois era o Instituto de Ciências Sociais, quando as Ciências Sociais são uma entidade que não existe. As Ciências Sociais têm o mesmo estatuto ontológico de Deus: não existem. 

É um negacionista das Ciências Sociais?
Aquilo é uma aldrabice, uma pura aldrabice. Dá os resultados que as pessoas querem que dê. Ou dá resultados absolutamente insignificantes. 

Está a falar da Sociologia?
Da Sociologia, da Ciência Política, das Relações Internacionais. Sabe o que é que aconteceu nas Relações Internacionais? Foi uma disciplina que se introduziu nos currículos das universidades americanas porque o Estado americano precisava de pessoas que conhecessem o mundo, que conhecessem a geografia do mundo, a diversidade das populações, das culturas, etc. O americano médio não sabe onde é que é a China e os Estados Unidos que são uma potência mundial precisavam de recrutar pessoas para o Exército, em primeiro lugar, e depois para a CIA, e para todos os serviços que tinham contactos directos com o estrangeiro. As Relações Internacionais serviam aos Estados Unidos para isso. Aquilo era um curso de preparação de funcionários de que o Estado precisava. Em Portugal não serve para nada. O nosso Exército, a nossa diplomacia, precisam de três ou quatro cursos de Relações Internacionais? Precisam de preparar funcionários?

Então acha que os cursos de Relações Internacionais são uma importação americana inútil?
É uma inutilidade americana que tem estatuto universitário. E a Ciência Política é a mesma coisa. O que é que se aprende nas Ciências Políticas?

Os diferentes sistemas políticos e constitucionais do mundo...
Isso faz parte da cultura geral. Os livros do [José] Sócrates são um bom exemplo de ciência política.

Leu?
Li, claro. Não estou a dizer que ele copiou, o que ali está foi escrito por ele. Ele leu 20 livros, com sorte. E depois espalhou umas citações e umas conversas por ali fora durante 150 páginas. E deve achar aquilo um extraordinário trabalho, o que é que se há-de fazer. 

Não recomendaria, portanto? É tempo perdido lê-lo?
As Ciências Políticas são tempo perdido, não particularmente o livro do Sócrates. Eu só li o primeiro que se chamava A Confiança no Mundo.

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E vai ler o segundo livro de memórias de Cavaco Silva que é lançado para a semana?
Não li o primeiro e não vou ler o segundo.

Porque é que sempre desprezou tanto Cavaco Silva?
Eu nunca desprezei Cavaco Silva.

Notava-se nas suas crónicas.
Acho que o professor Cavaco Silva, quando foi primeiro-ministro, fez muito mal a este país. Teve muito dinheiro para modernizar este país...

E modernizou… As estradas eram precisas.
Fez más escolhas. O dr. Cavaco não percebeu que o que era preciso era fazer a reforma de Portugal, explicar o que está mal politicamente e aplicar o dinheiro a fazer melhor. E não foi isso que ele fez. Fez umas estradas, deu uns subsídios para a agricultura e para acabar com a agricultura de subsistência e claro que não acabou. Deu dinheiro a pessoas que tinham duas vacas para deixarem de ter duas vacas. Receberam o dinheiro, compraram uma mota e abriram um café. De repente havia cafés por todo o país e a agricultura de subsistência continuou. Não explicou o que estava mal, não explicou a situação que tínhamos que era patética — ainda hoje é. Se ele queria a participação dos portugueses na modernização de Portugal, e eu acho que devia ter querido, tinha de explicar em que país vivíamos e o que ia fazer para o mudar.

E não fez nem uma coisa nem outra?
Fez umas mudanças sem explicar. Algumas delas foram feitas por pessoas que as explicaram mal. 

Dê um exemplo.
Houve uma ideia que era boa — e que eu critiquei na altura, mas critiquei mal — de meter toda a gente no sistema de ensino. Foi uma trapalhada. Não havia professores, não havia disciplina nas escolas. Mas aquilo era absolutamente necessário. Na altura não se podia escolher. Eu estava enganado, eles estavam certos. Mas em vez de dizerem porque não se podia estar a escolher, tomaram uma posição que era dizer “nós não podemos ver um aluno fora do sistema”... Foi uma coisa mal feita. Cavaco é muito inculto e começa por ser muito inculto politicamente. Uma pessoa que fosse culta politicamente e tivesse as boas intenções que ele tinha teria tido a preocupação de explicar aos portugueses o que estava mal e o que é que ele ia fazer. Eu uma vez ofereci-lhe uma viagem a Itália publicamente, disse que lhe pagava tudo se ele fosse passar um mês a Itália... Ele dizia que Portugal estava na moda, mas nem percebia o que era Portugal e o que estava a dizer aos portugueses era precisamente a coisa errada. Os portugueses já têm um altíssimo sentimento de superioridade...

Acha que os portugueses têm sentimento de superioridade?
Têm! Com certeza que sim!

Acha mesmo? Por que é que diz isso?
Está a dizer isso porque os portugueses dizem mal dos outros portugueses e de Portugal. Mas isso significa que têm a segurança necessária e suficiente para dizerem mal de Portugal e dos portugueses. Vá arranjar um húngaro que diga mal da Hungria e dos húngaros! Não arranja um! Pronto, deve haver um. Isto é um exagero retórico. Encontre um polaco que diga mal da Polónia como nós dizemos de Portugal... Deve haver poucos. Nós somos seguríssimos. A coisa mais importante que é preciso ter na Europa nós temos, que é a nacionalidade. Temos mil anos. Leia o ensaio da Hannah Arendt sobre a nacionalidade. Se você não tiver nacionalidade não existe. 

Portanto, ter um estado-nação com estas características é uma vantagem nesta altura...
Com certeza. Os portugueses têm uma segurança que ninguém tem. Inabalável. O que custou a alguns portugueses foi deixar de ser portugueses porque a nacionalidade os perseguia mesmo quando eram exilados. Anos e anos depois continuavam a ser portugueses. Uns continuam a ser portugueses porque ensinam português em universidades estrangeiras ou escrevem para jornais portugueses, outros porque são do Benfica ou do Sporting. Mas continuam todos a ser portugueses.
Temos uma nacionalidade inabalável e não é só por termos fronteiras. É porque em Angola se fala português quase sem acento, porque no Brasil se fala português, porque demos a volta ao mundo — bem sei que foi no século XV e XVI. Mas isso é um pilar, nós não precisamos de provar nada ao mundo. Um país tão pequenino que fala português como o Brasil, como Angola, deu a volta ao mundo e foi à Índia...

Isso deve-nos orgulhar?
Não é orgulhar. É o não termos que provar nada a ninguém. Nós somos óptimos! 

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Se se chamasse museu dos Descobrimentos para si não era problema nenhum?
Não era problema nenhum. Essa coisa do esclavagismo é muito simples. Nós não tínhamos dinheiro, quando se começou a fazer o comércio de escravos intensamente, não tínhamos dinheiro para ter uma Armada que vigiasse a costa de Angola e de Cabo Verde. Era uma fronteira livre, pilhava-se tudo, homens, mulheres, crianças, ouro, pedras. Ninguém em Portugal era oficialmente pela escravatura, que não existia legalmente desde 1876. É verdade que houve escravos até muito tarde em Portugal, que acabaram por se fundir na população. No século XVII o padre António Vieira começou a pregar contra a escravatura e contra os abusos dos brancos. Mas Portugal não tinha meios para patrulhar as costas para impedir o comércio de escravos. 

Acha que esta discussão toda é um sintoma do politicamente correcto?
É para estes senhores e estas senhoras justificarem a sua existência. Os propagandistas do politicamente correcto são muitas vezes ignorantes e o que eles dizem é muitas vezes grotesco. Mas, se repararem bem, o politicamente correcto é o individualismo, são tudo causas individualistas, são causas para libertar o indivíduo e lhe devolver o livre arbítrio, até ao ponto de eu escolher se quero morrer. Ao Estado português não interessa se um indivíduo quer morrer, há muita gente que quer morrer. O problema é saber quem o mata. O médico assistente? Haverá médicos no hospital especialistas em matar pessoas? Uma espécie de carrascos com o curso de Medicina?

Mas o museu dos Descobrimentos é uma proposta do PS, de Fernando Medina, que só recuou por causa de protestos de alguns académicos.
Eu tenho um nome que até foi usado por Salazar que é o “Museu do Mundo Português”

A exposição de 1940 era a Exposição do Mundo Português. Se o museu dos Descobrimentos já causa polémica, imagine-se esse... Esse é mesmo neocolonialista.
Não é. É contar o mundo que, no passado, foi dos portugueses. É passado. O que foi efectivamente, bom, mau ou assim-assim, 

Como é que vê a direita portuguesa hoje?
A direita portuguesa hoje não existe. Existem pessoas de direita, não existe direita.

O Rui Rio é uma desgraça?
De Rui Rio não vale a pena falar, já toda a gente percebeu quem é. O Rui Rio é uma desgraça, mas não é por estar mais à esquerda. É por ser ele. É um homem de ideias fixas, ultra-autoritário e convencido da sua superioridade como ninguém no mundo político. O único critério, para o Rui Rio, é saber se alguém está de acordo com ele. De resto, vê-se pelas intervenções que faz. Ele acha que é superior a tudo e que toda a gente tarde ou cedo há-de reconhecer isso porque ele é um homem honesto e genial. E o país não pode ser governado por ninguém tão bom como ele. Ele fala como se estivesse a oferecer a verdade única aos portugueses. Ele está mesmo convencido que é uma pessoa superior e que percebe perfeitamente o que é Portugal. Ele apela ao voto dos abstencionistas porque acredita mesmo que com o seu exemplo de virtude acabarão a votar nele. O Rui Rio é uma anomalia no sistema político. 

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Não há ali também um toque de populismo?
Não... Há só aquele desvario. É uma pessoa alucinada.

E Assunção Cristas?
A Assunção Cristas, coitada, o que é que ela há-de fazer? Está à espera que Rui Rio lhe dê os votos para aumentar o CDS. Eu já disse que isso não é uma política, é um desejo. 

Não acha que o CDS pode crescer?
Acho que a direita perdeu definitivamente os votos que perdeu em 2015. Não voltam. Com esta direita não voltam. 

Então António Costa terá maioria absoluta?
Costa não precisa da maioria absoluta para nada. Só precisa de ter mais votos do que o PSD e o CDS e mais votos do que o Bloco e o PCP. E assim não pode ser removido. Para que fosse removido era preciso uma aliança entre a direita e a esquerda. Essa aliança é impossível e ele pode governar o país muito tranquilamente fazendo exactamente o que está a fazer. O único perigo que ele tem é que o PS e o Bloco possam fazer maioria. 

Isso é um perigo?
É um perigo, porque nessa situação a esquerda do PS vai pressionar Costa a fazer as grandes reformas de que fala o Pedro Nuno Santos, como a nacionalização completa do sistema de saúde, acabar com as parcerias público-privadas, a dedicação exclusiva dos médicos... E criar um Estado muito maior e muito mais rígido. Isso é muito apelativo na franja esquerda do PS e no Bloco inteiro. António Costa vai ter grandes pressões para fazer essa aliança e uma parte do partido pode fazer uma cisão. 

Acha que é mesmo possível uma cisão?
Então não é! Quantas já não houve! 

Pedro Passos Coelho vai voltar à vida política?
Não sei. 

Gosta dele?
Gosto muito dele, mas ele é uma pessoa muito distante. É difícil percebê-lo. Tem um extraordinário autodomínio. O que ele deixa sair sobre o que se passa na cabeça dele é muito pouco. Para mim é um mistério, não sei o que está a pensar sobre o que pode ser o futuro dele.

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Vamos então acabar a entrevista...
Vocês não me perguntaram nada sobre política internacional, mas eu queria dizer duas coisas. Primeiro, sobre Espanha. Espanta-me muito que a esquerda europeia, que fala muito do populismo húngaro e do populismo polaco, ainda não tenha percebido que o populismo mais grave e evidente que há na Europa é o populismo catalão. Na linguagem da esquerda portuguesa, o populismo catalão é a democracia catalã. Estamos conversados. Depois espanta-me imenso que, nos jornais e nas televisões, as pessoas falem da “geringonça espanhola”. Tenho muita pena, mas o Governo de Espanha é a aliança da Guerra Civil. É por isso que no dia da Hispanidade, [o presidente do Governo Pedro] Sánchez é insultado, porque ninguém lhe reconhece o direito de falar da Hispanidade. Ele está a pôr em perigo a hispanidade com aquela aliança. Nós não percebemos a história espanhola, mas os espanhóis estão relativamente informados.
E quanto ao [Jair] Bolsonaro, digo só isto: os anos 20, no mundo de hoje, vão ser como os anos 30 do século passado. Vai haver uma vontade de afirmação do nacionalismo por todo o mundo ou mesmo, em casos como o do Estado brasileiro, a pura e simples ruína. Os Estados da América Latina são muito frágeis. Fala-se hoje muito no Brasil do separatismo. Não acho que Bolsonaro vá implantar o fascismo no Brasil, o que ele pode é acabar com o Estado federal brasileiro. 

Está a dizer que a situação lembra os anos 30 do século XX. Receia um epílogo como aconteceu nos anos 30?
Não faço essas comparações. O que estou a dizer é que há nacionalismos demais a quererem-se afirmar, alguns com toda a razão como o da Polónia e o da Hungria. Só existem como estados autónomos há 30 anos. Como é que esses estados hão-de ser liberais e democráticos? É evidente que são nacionalistas e populistas. Antes de mais nada, têm que afirmar a sua nacionalidade. Não são como os portugueses, que são portugueses há mil anos. São húngaros e polacos há 30 anos, com as fronteiras e composição populacional que têm agora que já de si é complicada, mais complicada na Hungria e na Polónia. E há a Itália que não é um Estado, nunca foi. Eles têm arranjado maneira de se equilibrar na corda bamba, mas nenhum deles leva a nacionalidade a sério. Basta ler a Elena Ferrante, tem uma tetralogia que eu li toda, extraordinária. 

Gostou da tetralogia de Elena Ferrante?
Claro que gostei! Devia ser uma leitura obrigatória para todos os europeístas. A União Europeia hoje é um veneno e vai acabar.