Em Santa Catarina, Lisboa enfrenta os seus monstros

Turismo massificado e repentino, vida nocturna vibrante, mercado imobiliário a ferver. Em Santa Catarina (e não só), a cidade é posta à prova. Como reage?

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LUIS VASCONCELOS

Numa quarta-feira de Outubro, ao cair da noite, duas faces da mesma cidade chocaram de frente junto ao Miradouro de Santa Catarina. Como tem acontecido todas as semanas, um grupo de pessoas protestava perto da vedação provisória ali colocada pela câmara municipal, pedindo que ela desapareça. Outro grupo, este de moradores da zona, estava lá para defender exactamente o oposto.

Ambos se manifestavam pela mesma coisa: o direito à cidade. Quem é contra a vedação e a imposição de horários no miradouro diz que esta é uma forma de roubarem parte da cidade aos cidadãos. Os moradores, os que não se foram embora, argumentam que a cidade já lhes foi roubada.

Gerou-se um animado debate. “Eu venho aqui desde miúdo, venho todos os dias, e nunca vi ninguém ser assaltado. Nunca vi aqui nada de realmente grave”, dizia um homem. “Aqui tudo se agrava. Não é ano a ano, nem mês a mês, é dia a dia. É a bandalheira completa”, contrapunha outro.

No fim de Julho, para surpresa de muita gente, a câmara de Lisboa anunciou que ia fazer obras no miradouro, também conhecido por Adamastor, para recuperar o espaço verde e o espaço público, melhorar a higiene urbana e a segurança. Anunciou igualmente que o local passaria a ter uma vedação e horários de abertura e fecho, com o objectivo, segundo o vice-presidente Duarte Cordeiro, de “estabelecer momentos de descanso” para o miradouro. Logo no dia seguinte ao anúncio foi montado o gradeamento verde que agora lá está. Pouco depois era colocada uma sarapilheira em toda a volta, que impede a fruição de vistas. Entretanto, por pressão política de toda a oposição, o executivo parou todo o processo e disse que ia promover um debate público sobre o tema.

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Estado actual do Miradouro de Santa Catarina, com uma vedação e sarapilheira verde Andreia Patriarca

“Este assunto apareceu como um cavalo de Tróia. É um exemplo flagrante de gentrificação: as pessoas são postas fora de suas casas e depois fora da cidade”, comenta Manuel Pessôa-Lopes, curador artístico e um dos impulsionadores do movimento “Make Adamastor Public Again”, que entretanto mudou de nome para “Libertem o Adamastor!” e conseguiu reunir mais de 4000 assinaturas numa petição. “Vamos levar uma petição à Assembleia Municipal de Lisboa que já tinha as assinaturas necessárias para ir à Assembleia da República”, brinca.

Para ele e para os peticionários, “não é o vedar que resolve” os problemas de Santa Catarina, que não se confinam ao miradouro. Neste como noutros pontos, a associação de moradores A Voz do Bairro concorda. “Todos os dias lidamos com situações muito graves, que põem em causa a vida das pessoas, e ninguém quer saber. Estamos abandonados”, desabafa Sérgio Sanbento, que vive numa rua onde já só há oito residentes permanentes. As restantes casas são alojamento local.

É frequente ouvir os moradores do centro histórico queixarem-se de que foram deixados à sua sorte perante os fenómenos que põem Lisboa à prova: o turismo massificado e repentino, a vida nocturna vibrante, um mercado imobiliário a ferver. Em Santa Catarina, como no Bairro Alto, como no Cais do Sodré, a habitação, a higiene urbana, o ruído e a segurança tornaram-se questões políticas de primeira grandeza. “Se os moradores são cada vez menos, a marginalidade ganha espaço”, concorda Manuel Pessôa-Lopes. “Mas a câmara serve-se dos problemas que existem e não resolve. O problema não está aqui. O deixar arrastar, o não resolver, serve como desculpa.”

Mais do que uma vedação

O Adamastor já há muito que não é o sítio romântico onde Chico declarou o seu amor a Tatão (n’O Pai Tirano, 1941), até porque as obras de 2013 lhe alteraram significativamente a fisionomia. “Foi-nos imposto um equipamento, projectado da forma como está, para receber mais gente. A procura começou a crescer aí. Não temos capacidade para receber esta quantidade de pessoas. Criámos ali um rooftop dos pobres”, critica Nuno Santos, da associação A Voz do Bairro, que lançou duas petições. Uma defende “um gradeamento e horários de funcionamento” no miradouro e tem cerca de 300 assinaturas. A outra, com quase mil, pede a resolução de problemas em toda a freguesia da Misericórdia, que precisamente abarca os três bairros mencionados acima.

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O Miradouro de Santa Catarina antes das obras de 2013 Miguel Madeira

“Em Fevereiro dei-me ao trabalho de contar e daqui da esquina [entre a Calçada do Combro e a Rua Marechal Saldanha] até ao Adamastor eram 48 traficantes de droga”, conta Sérgio Sanbento. O assédio a quem passa, relata este morador, é uma constante. “Metem-se com as pessoas, atacam as pessoas. Na última assembleia de freguesia foi lá um senhor contar que disse ‘não’ a dois dealers e foi agredido à porta de casa”, relata Nuno Santos. “Na nossa rua pegaram fogo a um carro. Já vi pessoas a fazer sexo, nuas, no meio da rua às duas da manhã”, afirma Catarina Teixeira, outra moradora.

Discute-se, por isso, muito mais do que uma vedação. “Isso não é nada, é um começo. Acreditamos que é um bom começo para regrar o local, porque o local precisa de ser regrado”, defende Nuno Santos, que afirma também que, naquela zona, o número de traficantes de droga e o barulho diminuíram nas últimas semanas, depois de colocado o gradeamento provisório.

A junta de freguesia diz o mesmo. “Recentemente tem-se sentido, e através de relatos de moradores, uma vaga de abordagens mais violentas por parte dos vendedores de droga no local, nomeadamente quando os transeuntes negam essa abordagem. Não possuímos dados relativos ao aumento ou diminuição deste tipo de situações desde que a vedação foi colocada, no entanto, visitando o local, pode verificar-se que a presença destas pessoas é bastante menor.”

Proibir o álcool na rua?

Junta de freguesia, moradores e opositores à vedação coincidem em várias considerações, sobretudo nestas: o bairro é mal iluminado e tem pouco policiamento. “O problema de segurança aqui sempre existiu. Eu trabalhei num projecto, em 2006, em que se trabalharam precisamente soluções para o problema”, diz Manuel Pessôa-Lopes, que associa esta decisão da câmara à recente abertura de um hotel de cinco estrelas perto do miradouro (uma acusação que Fernando Medina rejeita). “Não é vedar que resolve nada. O que resolve é policiamento, vigilância, programas de intervenção e habitantes. O primeiro instinto das pessoas é ‘Vedando, isto fica bom’. No Jardim de Santos havia má frequência à noite, agora não há porque puseram grades, mas há nas ruas à volta.”

Pessôa-Lopes diz que não se pode comparar Santa Catarina a locais como o Jardim da Estrela ou mesmo o Jardim de Santos, pois esses “têm um acervo botânico que justifica o seu descanso”. E dá o exemplo do Jardim e Miradouro do Torel, “que está vedado e não é por isso que está mais cuidado”. Além disso, argumenta: “Os namorados que quiserem vir aqui às três da manhã têm todo o direito. Quem quiser ver o sol nascer, porque não pode vir?”

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Além de fazer obras, a câmara quer ainda mudar a concessão do quiosque Andreia Patriarca

“O miradouro é um espaço a fechar à noite. Fechar mesmo. Eu presenciei pessoas a fazer fogueiras às cinco da manhã, a atirarem achas para a rua de baixo. Há tambores à meia-noite, à uma, às duas, três da manhã. Tenho vizinhos que já saíram à rua para dar um robe a miúdas que foram violadas e estão com as roupas todas rasgadas. Há aqui agressões diariamente, às vezes mais do que uma por dia. O fecho do miradouro suaviza a situação. Mas não a resolve”, descreve Sérgio Sanbento.

Além de querer videovigilância no bairro, a junta da Misericórdia defende “a proibição de venda de álcool para a via pública” e “a criação de uma plataforma à semelhança do Portal Na Minha Rua, na qual os munícipes possam dar os seus contributos e denunciar situações de risco sem terem de ser identificados pelas autoridades”. A câmara de Lisboa está a estudar as propostas.

Uma mensagem para a cidade

Para o urbanista João Seixas, “a cidade é, por natureza, um palco e um resultado de visões e interesses distintos”, mas o Miradouro de Santa Catarina “é particularmente sensível, porque é um lugar com forte marca identitária, simbolismo e centralidade”. Ou seja, “o que se fizer deve ser feito com pinças”, defende, revelando ser contra a vedação e a imposição de horários. “Os espaços públicos devem ser de coexistência, ter diferentes usos e visões. É muito redutor que um espaço público fique muito especializado”, diz. E isso, acrescenta, é válido tanto para uma utilização mais informal, como acontecia até há pouco, como para uma putativa ‘privatização’ por via da mudança dos donos do quiosque que ali existe.

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A vedação provisória foi colocada em Julho. A câmara anunciou entretanto que quer promover um grande debate público Daniel Rocha

“A cidade terá sempre espaços de maior transgressão”, mas isso “nunca deve ser argumento para uma diminuição do direito ao espaço público”, afirma João Seixas, alertando que o que se passar em Santa Catarina será “uma mensagem para toda a cidade”.

Uma mensagem de respeito, ainda que tardio, pelos moradores, na visão destes; uma porta aberta ao encerramento de outros sítios da cidade, na visão do grupo “Libertem o Adamastor”. E se ambos tiverem razão?

“Se há um momento para demonstrar uma actuação urbana democrática e responsável, este é um bom exemplo”, diz ainda João Seixas. “Isto ia a bom porto se a câmara e a junta debatessem com as pessoas. Têm essa responsabilidade e outra, que é a de defender o espaço público”, afirma o urbanista. Seixas propõe uma “monitorização mais atenta” do bairro através do policiamento e, por exemplo, uma co-responsabilização das várias partes – e se moradores, frequentadores, autoridades e turistas fossem todos chamados a cuidar daquele espaço? “O caminho tem de ser este, nunca pode ser o de bloquear o acesso.”

A 7 de Novembro, a câmara reúne-se para ouvir a população das freguesias de Santa Maria Maior, Santo António e Misericórdia. O assunto Santa Catarina vai certamente entrar no debate.