Tribalistas enfim ao vivo, uma celebração “muito feliz”

O enorme êxito do primeiro disco não teve direito a palcos. Só agora, um ano depois do segundo disco, os Tribalistas estão em digressão juntos, apresentando-se dia 21 em Lisboa e 23 no Porto. Carlinhos Brown, Marisa Monte e Arnaldo Antunes explicam porquê.

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Carlinhos Brown, Marisa Monte e Arnaldo Antunes: “Somos diferentes, de cidades diferentes, dois homens e uma mulher, fazemos música mas cada um tem a sua particularidade num todo integrado, unido, amoroso, complementar” Daniel Mattar

O primeiro disco, em 2002, foi para eles um prazer e um teste. Arnaldo Antunes, Marisa Monte e Carlinhos Brown gravaram um disco juntos, com 13 canções, e esse 13 acabou por ser um número de sorte: Tribalistas, assim chamaram ao disco, teve um enorme sucesso nacional e internacional, vendendo mais de 2 milhões de cópias no Brasil e no mundo. Ao mesmo tempo, criou um grupo, um supergrupo, já que todos eles tinham bem-sucedidas carreiras a solo, mas um grupo que não rodou pelos palcos. Até que um segundo disco, lançado em 2017 com o mesmíssimo título do primeiro (só Tribalistas, com uma capa também gráfica, criada a partir das imagens dos três), os levou a quebrar esse tabu. Consumando uma vontade que, afinal, já era também e deles há algum tempo, como explicam ao Ípsilon. “Essa expectativa grande, que o público tem, de ver o trabalho em palco, é nossa também”, diz Arnaldo Antunes. “Já a tínhamos há muito tempo, mas não houve possibilidade. No primeiro disco, gravarmos juntos já foi muito, havia as nossas carreiras a solo e tudo isso. Mas gente continuou compondo juntos nos anos seguintes e esse show agora mostra essa história toda, que é longa.” Para Arnaldo, sucedeu na altura certa: “É um momento muito feliz, porque a relação entre nós é bem mais madura agora, a gente fica surpreso de ver como a interacção das músicas do primeiro álbum com as do segundo, bem como outras parcerias que fomos fazendo separadamente, têm uma coesão, uma relação muito intensa na formação da identidade dos Tribalistas. Então o show acabou vindo no momento certo, é uma celebração muito feliz.”

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Carlinhos Brown, Marisa Monte e Arnaldo Antunes: “Somos diferentes, de cidades diferentes, dois homens e uma mulher, fazemos música mas cada um tem a sua particularidade num todo integrado, unido, amoroso, complementar” Daniel Mattar

Se os espectáculos em Lisboa e Porto, o primeiro marcado para dia 21 na Altice Arena e o segundo para dia 23 no Coliseu do Porto (ambos às 21h30), seguirem o roteiro dos do Brasil, começarão e acabarão com a canção Tribalistas, tendo pelo meio as canções dos dois discos, outros temas que foram compostos em parceria por apenas dois deles ou do repertório individual de cada um. Criar canções para os Tribalistas é, para eles, “impulsivo”, diz Marisa Monte. “Às vezes vemos uma música que pode ser potencializada na voz dos três, outras terão mais a minha cara, a do Arnaldo ou a do Brown. Não há uma regra.” Arnaldo: “Na verdade, gravarmos juntos como Tribalistas foi nesses dois momentos. E a gente viu que eram canções que fazia sentido gravarmos juntos.”

“Um trabalho mais colectivo, talvez,” diz Marisa. E esse gerou o som próprio que caracteriza o grupo, diferente do de cada um. “Não é som, é soma”, acrescenta Carlinhos Brown. “Nosso encontro está muito ligado a um fenómeno em que nós intuímos o que fazer, numa organização não organizada. Quando as músicas nos chegam, são elas que nos escolhem. E essa escolha relaciona-se, a título de tradição e conhecimento, com a nossa história, falamos a língua portuguesa com um prazer enorme, procurando que as melhores palavras que nos vêm de forma orgânica sejam pinturas também. O que passa pela garganta de Marisa é para qualquer pessoa do mundo cantar. Ela é um filtro de beleza, porque além de cantar bem, a voz escolhe palavras, dá uma segurança enorme. Porque uma palavra mal colocada no tempo, mesmo que seja bonita, é uma desafinação literária.”

E há o lado lúdico, quase infantil (ainda que falsamente infantil), que emana de vários temas. Brown: “Brincamos muito com onomatopeias, neologismos, é o lado infantil que nós temos. As nossas ‘crianças’ se expõem muito umas às outras, se auto-cativam, mostrando o que há em nós do que se não brincou ainda, e tudo isso no nosso ‘parque de diversões’ que é o fazer das músicas.”

Refugiados e migrações

O novo disco tem, entre outros temas de inspiração social, dois muito marcados pela actualidade: Diáspora e Lutar e vencer. Arnaldo caracteriza ambos: “Na verdade a gente não escolhe os temas, eles aparecem através da nossa vivência, aquilo é organicamente vivido. Diáspora é um tema muito actual com o que se está vivendo no mundo, os refugiados, esse drama todo, mas sentimo-lo como brasileiros, porque o Brasil é um país de imigrantes, de formação cultural híbrida com várias pessoas do mundo. Com a esperança de que um dia não haja mais fronteiras entre nós todos, que gente valorize mais o ser humano do que a nacionalidade dele.” Já Lutar e vencer teve origem num movimento estudantil, no qual eles também acabaram por participar. “Fala de um momento que a gente viveu aqui em São Paulo, quando o governo estava fechando várias escolas públicas e restringindo os direitos dos estudantes, que ocuparam as escolas para que não fossem fechadas. Eu participei, Marisa também, fomos cantar numa dessas escolas e foi muito interessante. Não era um movimento político partidário, mas sim por uma causa que todos prezamos, que é a educação.”

Carlinhos Brown sublinha: “E tudo isso é emigração. O estudante emigra de sua casa para a escola. O que difere dos outros é que a emigração estudantil continua sendo a luta, a educação é uma eterna luta para vencer o tempo de vida na Terra, para compreender mais o que estamos vivendo. A guerra é a negação da luta, a negação da educação, da formação. Há muito tempo que se está falando na necessidade de a África ser produtiva, mas extrair diamantes e não plantar feijão faz com que essa comida que vem, aérea, como esmola de um lugar extremamente rico, corresponda aos desejos comerciais de que só a pobreza tem força consumista. Estamos desconcentrados do desejo de que o dia pode amanhecer melhor para o nosso vizinho, porque mesmo sem esperanças acerca da segurança, se soubermos que o nosso vizinho está bem também nós nos sentiremos seguros.”

Diferenças, uma riqueza

O abraçar dos palcos trouxe, aos três tribalistas, uma experiência gratificante. “A recepção tem sido incrível”, diz Marisa, “com momentos inesquecíveis de extrema emoção e beleza. O show, além das canções, tem um aspecto visual que ajuda muito a comunicar o que a gente quer dizer sobre o país, sobre a nossa cultura, sobre a música. Como estamos vivendo um momento, no Brasil, de uma certa insegurança e dúvidas quanto ao nosso destino, o show tem reforçado um aspecto muito positivo e as pessoas saem de lá muito felizes, não só pela nossa música mas também por vários outros aspectos da cultura brasileira que a gente admira. E tem sido muito gratificante.”

Arnaldo: “O próprio facto de sermos muito diferentes mas sermos complementares é já uma resposta a essa realidade mais intolerante que a gente está vivendo, mostrando que as diferenças são uma riqueza e não apenas toleráveis. E essa nossa natureza é a do próprio do Brasil.” Marisa completa o raciocínio: “Vivemos, no mundo, um momento de muita polarização, não só no Brasil. Isso talvez seja um reflexo do mundo contemporâneo, das redes, essa transformação tecnológica que está afectando a humanidade de uma maneira estranha. Estamos vivendo uma espécie de absorção da linguagem da informática, que é 0-1, sem meios-tons, no comportamento da sociedade. Mas nós somos diferentes, de cidades diferentes, somos dois homens e uma mulher, fazemos música mas cada um tem a sua particularidade num todo integrado, unido, amoroso, complementar, fazendo com que as nossas qualidades tenham um resultado maior do que teríamos nas nossas individualidades. É um exemplo muito bonito e as pessoas percebem isso com muita clareza.”

“Isso é feito num tom subtil, e essa subtileza também vem do outro”, diz por sua vez Carlinhos Brown. “Nesse momento incomum do mundo, nós abrimos mão da ilusão pela razão. A ilusão é importante, porque nela está a fantasia, a possibilidade de brincar. Mas a razão vai querer um propósito de individualizar, para criar certezas em apenas um pensamento. A razão afastou-se da fantasia, afastou-se do sonho.” E isso reflecte-se no rumo das sociedades, diz Marisa: “Existem estudos que mostram que a democracia está ameaçada em muitas democracias do mundo. E isso é tão louco, é um retrocesso civilizatório muito grande, porque a democracia pode ter todos os defeitos, mas ela é a única saída para a democracia.” O tribalismo que o diga. Ou que o cante.