"Os professores não passaram a odiar os alunos, mas adoeceram internamente"
Raquel Varela diz que "os professores são vítimas de uma organização de trabalho que os adoece".
O Inquérito Nacional sobre as Condições de Vida e Trabalho na Educação em Portugal foi uma encomenda da Federação Nacional dos Professores (Fenprof) à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, da Universidade Nova de Lisboa. Inquiriu 16 mil docentes. As respostas foram trabalhadas por uma equipa coordenada por Raquel Varela. Nesta sexta-feira ficou a saber-se que perto de nove em cada dez querem reformar-se antecipadamente, "o que é algo muito preocupante".
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O Inquérito Nacional sobre as Condições de Vida e Trabalho na Educação em Portugal foi uma encomenda da Federação Nacional dos Professores (Fenprof) à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, da Universidade Nova de Lisboa. Inquiriu 16 mil docentes. As respostas foram trabalhadas por uma equipa coordenada por Raquel Varela. Nesta sexta-feira ficou a saber-se que perto de nove em cada dez querem reformar-se antecipadamente, "o que é algo muito preocupante".
Que relação há entre o facto de os professores se sentirem “esgotados” e o uso reportado de medicamentos, álcool e drogas?
Há uma relação directa, absolutamente inequívoca, entre o número de pessoas em burnout extremo e o consumo dessas substâncias. Como a maioria dos professores continua a gostar dos seus alunos e de dar aulas, temos uma implosão e não uma explosão. Os professores não passaram a odiar os alunos, mas adoeceram internamente. Os professores são vítimas de uma organização de trabalho que os adoece. Só quando entendermos isso, podemos criar políticas que modifiquem a situação. Não vale a pena ir ter com os professores e dizer-lhe para eles fazerem mais nestas condições, porque só os vamos adoecer mais e ter uma escola pior. Enquanto eles não estiveram bem, não vamos ter boa escola.
Quase dois terços dos professores manifestam preocupações com a indisciplina. Houve um aumento da indisciplina nos últimos anos?
A conclusão baseia-se na percepção sujectiva dos professores. Mas há uma relação entre essa percepção e os níveis de burnout. Os professores que estão mais preocupados com a indisciplina são também os que estão mais exaustos emocionalmente. Nós não sabemos como evoluiu a indisciplina no país nos últimos 40 anos, o que sabemos é que a forma de lidar com a indisciplina mudou dentro das escolas. Os casos de indisciplina eram vistos como um problema da escola e da sociedade não como um problema do professor, que individualmente não soube lidar com aquele aluno individualmente dentro da sala de aula. Isso é um factor de exaustão emocional porque responsabiliza individualmente um professor por situações que na esmagadora maioria das vezes não estão na sua competência nem têm origem em si.
Também foi possível estabelecer uma correlação entre a exaustão emocional dos professores e os níveis de desejo de reforma antecipada demonstrados?
Há uma relação entre a exaustão emocional e o desejo de reforma, mas os níveis de desejo de reforma antecipada são generalizados. Estamos a falar de quase 90% dos professores, o que é algo muito preocupante. Generalizou-se na sociedade portuguesa a ideia de que o sonho das pessoas quando estão a trabalhar é deixarem de trabalhar. Mas isto não era assim há 20 anos. As pessoas entravam em depressão quando deixavam de trabalhar. Gostavam do trabalho porque era um lugar onde podiam desenvolver-se, onde se realizavam.
Hoje em dia, com os níveis de sofrimento no trabalho, temos o contrário. O desejo das pessoas é deixar de trabalhar. E isto tem também que ver com a alteração da organização da escola. O fim da gestão democrática (as pessoas sentem só que executam ordens), a falta de reconhecimento público da profissão. E para o que é que se educa? A educação passou a ser para o mercado e não para formar seres humanos completos.