O “bando dos quatro” e o renascimento das periferias do vinho
Há muito mais Douro para além dos postais ilustrados junto ao rio e dos vinhos concentrados e maduros. O Douro dos altos está a começar a ter uma segunda oportunidade. E há outros bons exemplos que mostram que outras regiões se reinventam e o vinho português se diversifica e avança. Merecem uma vénia.
Durante a vindima, um grupo de jovens do planalto de Alijó-Favaios, o maior do Douro, desce até junto ao Pinhão e, de noite, rebusca umas caixas de uvas em várias quintas famosas das redondezas. “Rebusco” é um eufemismo. Tecnicamente, trata-se de um roubo, mas é um daqueles roubos piedosos e divertidos que não fazem mal a ninguém. “Vindimam” uma caixa em cada quinta (uma caixa leva uns 20 quilos de uvas) e, no final fazem um vinho, a que chamam “Roubado”.
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Durante a vindima, um grupo de jovens do planalto de Alijó-Favaios, o maior do Douro, desce até junto ao Pinhão e, de noite, rebusca umas caixas de uvas em várias quintas famosas das redondezas. “Rebusco” é um eufemismo. Tecnicamente, trata-se de um roubo, mas é um daqueles roubos piedosos e divertidos que não fazem mal a ninguém. “Vindimam” uma caixa em cada quinta (uma caixa leva uns 20 quilos de uvas) e, no final fazem um vinho, a que chamam “Roubado”.
Não enchem mais do que uma barrica de 225 litros. No lote entram uvas das vinhas onde é feito o tinto Pintas ou de quintas como a Noval, por exemplo. Uvas de várias castas, tintas com algumas brancas à mistura, porque o “roubo” é feito às escuras e de forma rápida. O prejuízo para os proprietários das vinhas é ridículo (10 a 15 euros) e o único lucro dos jovens é o gozo de beber um vinho que, na sua soma, reflecte o melhor da região. Não há vendas, o vinho é para ser bebido apenas em confraternizações do grupo.
Já há pelo menos duas colheitas de “Roubado”. Quando o vinho estiver pronto, é provável que os jovens enviem umas garrafas a cada um dos “extorquidos”, como recompensa. Só lhes ficava bem.
Directa ou indirectamente, todos os membros do grupo estão ligados ao vinho. Alguns são enólogos recém-licenciados. O “Roubado” é apenas um pretexto para se encontrarem e fazerem provas de vinhos. São jovens que se divertem a ir “roubar” umas caixas de uvas mas que também cedem vinhos próprios em favor de causas sociais. O que os move é o gosto pelo vinho e a necessidade de tornar mais fácil e interessante a vivência num concelho (Alijó) cada vez mais desertificado e envelhecido e onde a oferta de vinhos, em bares e restaurantes, é muito limitada e regional.
O “Roubado” é apenas um fait-divers. O lado verdadeiramente interessante desta história é ela ser um bom exemplo da irreverência e do sangue novo que uma nova geração de enólogos e enófilos está a insuflar àquele planalto do Douro. Historicamente ligado à produção de vinho Moscatel fortificado, o planalto de Alijó-Favaios está quase no limite para a produção de vinho do Porto (600 metros de altitude), o que, de algum, modo, explica a sua pouca visibilidade no contexto regional e nacional. Durante muito tempo, o Douro que realmente contava ia da meia encosta até à borda do rio e dos seus principais afluentes. As uvas dos altos valiam pouco. Hoje, com o boom dos vinhos DOC Douro e as alterações climáticas, as vinhas de altitude passaram a despertar interesse e a ter cada vez mais valor. Começa a haver mais gente a querer comprar vinhas no planalto do que a querer vender. Até há alguns anos, os espumantes e os brancos Vértice, os brancos da Quinta da Granja, da Real Companhia Velha, e os Moscatéis da Adega de Favaios eram praticamente as únicas boas referências. Agora já podemos somar à lista a Gran Cruz, a Quinta da Faísca (Vale da Pôpa e Lacrau) e os vinhos Olho no Pé, de Tiago Sampaio, Bardino, de João Pires, Pedigree, de Pedro Branco, e Finger Print, de Pedro Guedes.
João Pires, Pedro Branco e Pedro Guedes ainda são produtores de garagem, mas os seus vinhos, cada um com o seu estilo próprio, são muito interessantes. Nesta vindima, começaram todos a vinificar na nova adega de Tiago Sampaio, que é, na verdade, a velha adega cooperativa de Sanfins do Douro. Tiago Sampaio adquiriu-a este ano à Gran Cruz. Esta empresa planeava fazer ali o seu principal centro de vinificação na sub-região do Cima Corgo, mas acabou por construir uma adega nova junto à zona Industrial de Alijó.
A adega de Tiago Sampaio é uma espécie de incubadora, uma pequena fábrica de experiências. Cada um dos elementos desta espécie de “bando dos quatro” faz o vinho à sua maneira. Nada é igual. Nesta vindima, por todos, chegaram a fazer mais de uma dúzia de vinhos diferentes.
Os quatro produzem os seus próprios vinhos e trabalham também para outros produtores. Pedro Guedes trabalha com Celso Pereira nos espumantes Vértice; João é o enólogo da Quinta da Pedra Alta (Freguesia de Favaios), que foi recentemente adquirida pelo vice-presidente do Manchester United, Ed Woodward, o mesmo que dizem estar em rota de colisão com José Mourinho; Pedro Branco é o enólogo da Quinta da Foz, junto ao Pinhão; e Tiago Sampaio é o consultor dos vinhos Aphros, na região dos Vinhos Verdes, Tiago estudou em Oregon, nos Estados Unidos, Pedro Guedes e João fizeram estágios na Austrália. São jovens enólogos já com mundo e residem todos no concelho de Alijó. Não são os únicos. Ana Hespanhol (vinhos Calços do Tanha e Zimbro), por exemplo, também trocou a Régua por Alijó.
Há muito mais Douro para além dos postais ilustrados junto ao rio e dos vinhos concentrados e maduros. O Douro dos altos, seja o de Alijó, seja o de Sabrosa, Vila Real, Carrazeda de Ansiães, Vila Nova de Foz Côa, Meda, Armamar ou Tabuaço, está a começar a ter uma segunda oportunidade. A frescura que as vinhas de altitude trazem aos vinhos é um chamariz cada vez mais poderoso, tanto para os brancos e espumantes como para os tintos. A irreverência dos jovens do “Roubado” e o exemplo do grupo dos quatro de Alijó mostram-nos que há algo a acontecer na periferia da região, longe da geografia (e do mediatismo) dos Douro Boys, das quintas de renome do Douro e do monopólio do Moscatel.
O fenómeno não se cinge ao Douro. Os casos, entre outros, de António Madeira, que trocou Paris pelas vinhas velhas e quase abandonadas do sopé da serra da Estrela, de Diana Silva, que está a fazer vinhos tranquilos com a improvável casta Tinta Negra em São Vicente, na Madeira, e de Rodrigo Filipe, produtor de belíssimos vinhos orgânicos perto das Caldas da Rainha, na região de Lisboa, por exemplo, enquadram-se nesse ressurgimento das periferias, das zonas esquecidas mas com tradição vitivinícola. São fenómenos isolados? Podem ser, mas é assim, com estes bons exemplos, que as regiões se reinventam e o vinho português se diversifica e avança. Merecem uma vénia.