O desaparecimento de um porto seguro em três andamentos
Há 108 anos, Lisboa não tinha "o fado de gruas", nem a Almirante Reis era a avenida que hoje acolhe gentes do mundo, para lá dos lisboetas que resistiram aos tempos. No DocLisboa, há dois documentários que mostram os diferentes andamentos de uma capital enevoada por tamanhas mudanças.
Um condutor de tuk-tuk desencantado com a sua cidade é um cenário pouco provável para a realização de um documentário sobre turismo que quer dissipar o nevoeiro que embruma as mudanças que ocorrem na cidade. Contudo, ainda mais improvável, é a relação que outro documentário filmado exclusivamente numa das artérias mais movimentada da capital — a Avenida Almirante Reis — estabelece com aquilo que se passa em Lisboa: um sentimento de vazio, generalizado e constante, que fica agora registado para nunca mais deixar de assolar quem vá assistir aos dois filmes que estão na competição nacional do DocLisboa, que começa esta sexta-feira, em várias salas da cidade.
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Um condutor de tuk-tuk desencantado com a sua cidade é um cenário pouco provável para a realização de um documentário sobre turismo que quer dissipar o nevoeiro que embruma as mudanças que ocorrem na cidade. Contudo, ainda mais improvável, é a relação que outro documentário filmado exclusivamente numa das artérias mais movimentada da capital — a Avenida Almirante Reis — estabelece com aquilo que se passa em Lisboa: um sentimento de vazio, generalizado e constante, que fica agora registado para nunca mais deixar de assolar quem vá assistir aos dois filmes que estão na competição nacional do DocLisboa, que começa esta sexta-feira, em várias salas da cidade.
Paulo Abreu teve a ideia de realizar este documentário ao fazer um vídeo institucional para um arquitecto. “De repente, tive a ideia de fazer um filme meio cómico sobre o que estava a acontecer na cidade nos últimos seis anos. Chamou-lhe "Allis Ubo", o equivalente em fenício a “porto seguro”. Uma história sobre Ulisses, o bravo herói que, reza a lenda, fundou a cidade de Lisboa ao voltar da guerra contra os troianos, é escutada num audioguia em várias línguas, logo no começo do filme. Foi assim que Paulo encontrou forma de narrar o que pretendia. “Baseei-me em audioguias que já existiam e adaptei-os. Alguns diziam que o jardim da Nossa Senhora do Monte era um sítio muito sossegado, e isso não é bem assim”. Depois disso, juntou-lhe aquele que acabaria por ser o seu protagonista: um condutor de tuk-tuk desiludido com as transformações que a sua cidade vem sofrendo e que contrapõe as informações dadas pelos audioguias ao contar a sua versão da história, dos sítios e das gentes de Lisboa.
Paulo decidiu criar um “fado de gruas”. São coreografias com gruas que servem de metáfora para aquilo que se passa por toda a cidade. As obras que mudam a cidade. Para o bem e para o mal. O realizador, contudo, nota uma diferença entre esta e outras capitais. É que aqui, diz ele, parece que os espaços não são feitos para os seus habitantes, ao contrário de Berlim, em que se vê que “é uma cidade feita para o bem-estar de quem lá vive”. O realizador quis fazer um filme trágico-cómico que fugisse ao tradicional lado do proletariado oprimido que, ainda assim, "não deixa de ser importante".
Para ligar o filme, Paulo recorreu a uma rádio de tuk-tuk que passa o dia a emitir notícias sobre o crescimento do turismo e os cofres que se vão enchendo. Essa rádio acompanha as viagens do motorista que, tal como ele, vai esmorecendo e transmitindo notícias cada vez piores.
Às tantas, João Patrício, o condutor, depara-se com os seus sítios de sempre fechados ou emparedados. A rádio, essa, anuncia a tendência crescente de desaparecimento dos turistas das ruas de Lisboa. Trocaram-na pela Turquia ou pelo Egipto.
Parte-se da perspectiva do turista, para logo depois se espelhar na de João Patrício e na vivência de uma cidade que cada vez está mais “desaparecida” devido às obras, aos navios que atulham Santa Apolónia e ao alojamento local. O sentimento de João espelha, se não, aquilo que acontece a Lisboa.
O mais curioso é que Renata Sancho, realizadora do documentário "Avenida Almirante Reis em 3 Andamentos", e sem o saber, criou um filme que em quase tudo se relaciona com o de Paulo. A diferença é que a cinéfila conseguiu personificar numa só zona da cidade todas as transformações que se têm dado em Lisboa. A ideia para o documentário surgiu em 2014. Mora na Almirante Reis “há mais de 35 anos” e era impossível ignorar as transformações de uma das zonas mais vibrantes da capital.
Assim sendo, decidiu-se a eternizar as suas mudanças. “O projecto tinha como intenção fazer um filme somente com imagens de arquivo que documentassem a avenida”, diz Renata. Contudo, por imposição de dificuldades que foi encontrando ao longo destes quatro anos, resolveu adaptar a sua ideia e basear-se num guião escrito por Aquilino Machado, um geógrafo que estudou exaustivamente a zona.
No guião do geógrafo, a avenida era pautada por quatro momentos, mas Renata decidiu cingi-los a três. “A Almirante Reis passa na nossa ideia, e por o que está no filme, como sendo uma avenida que sempre teve uma ocupação popular em termos de revolução”, diz. Um dos momentos-chave é, então, a revolução republicana de 1910 que aparece no início representada através de imagens de arquivo. As imagens são densas e conferem desde cedo uma cadência lenta, mas é daí que Renata retira uma frase que considera crucial para o filme: “Já não há portugueses”. Não há certezas, mas poderá ter sido proferida pelo Almirante Cândido dos Reis, na varanda da Câmara de Lisboa, durante o processo revolucionário de 1910. Segundo Renata, esse “poderia ser o título do filme”.
Outro dos momentos é o Primeiro de Maio de 1974, em que a Almirante Reis foi palco de, "possivelmente, um dos dias mais felizes dos portugueses”, afirma a cinéfila. Uma vez mais, a avenida aparece como berço de um momento revolucionário e de mudança, tal como agora o é, mas de uma forma mais dissimulada.
No filme, os restaurantes vão desaparecendo, as papelarias mudando de sítio e os cafés sendo apenas memórias de tempos idos. É no diálogo entre dois chineses, numa das muitas lojas que povoam a avenida, que se regista o momento de mudança. Fala-se sobre planos de vida, sobre a vontade de regressar ou não à China e sobre ambientadores de casa-de-banho. Sobre o que resta e o que desapareceu.
Passa-se uma hora e sai-se das salas dos cinemas sem se ser capaz de ignorar o que se viu: o desaparecimento encrustado nas gentes e nos locais de uma Lisboa que não é mais um porto seguro.