Sob o signo do politicamente correcto
O número mais recente da revista italiana Micromega, dirigida por Paolo Flores d’Arcais, é um manifesto colectivo “contro il politicamente correto” (assim reza o título), designado pelo director, no artigo de apresentação, como um “ópio da esquerda”. Flores d’Arcais é um intelectual italiano que iniciou a sua actividade política num movimento juvenil comunista e, depois de ter passado por várias estações de acolhimento ao sabor das contingências e metamorfoses da política italiana, situa-se actualmente num lugar ideológico incerto. Este número da Micromega, revista que nasceu ao serviço de uma esquerda rebelde em relação a ortodoxias, conta com a colaboração de nomes importantes, tais como a filósofa francesa feminista Élisabeth Badinter e a escritora italiana Ginevra Bompiani.
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O número mais recente da revista italiana Micromega, dirigida por Paolo Flores d’Arcais, é um manifesto colectivo “contro il politicamente correto” (assim reza o título), designado pelo director, no artigo de apresentação, como um “ópio da esquerda”. Flores d’Arcais é um intelectual italiano que iniciou a sua actividade política num movimento juvenil comunista e, depois de ter passado por várias estações de acolhimento ao sabor das contingências e metamorfoses da política italiana, situa-se actualmente num lugar ideológico incerto. Este número da Micromega, revista que nasceu ao serviço de uma esquerda rebelde em relação a ortodoxias, conta com a colaboração de nomes importantes, tais como a filósofa francesa feminista Élisabeth Badinter e a escritora italiana Ginevra Bompiani.
A fragilidade em que se encontra o discurso de esquerda, desde há cerca de três décadas, mede-se pela sua incapacidade em contar histórias convincentes, em revigorar um “imaginário”. Daí que ele se tenha tornado literalmente conservador: a sua terminologia e as suas lutas exercem-se, quase sempre, em nome da conservação do que foi outrora adquirido. Pelo contrário, a direita (securitária, neoliberal, muitas vezes xenófoba), conseguiu difundir um conjunto relativamente coerente de histórias, de imagens, de estatísticas, de slogans e de medos que colonizaram até muito dirigentes de partidos políticos de esquerda, como é visível em toda a Europa. A questão do politicamente correcto tornou-se uma matéria que alimenta com eficácia o poder de cenarização da direita. Na verdade, está montada uma cenografia (a que a revista Micromega decidiu dar o seu aval, considerando que ela traduz uma realidade a rejeitar) que cria uma equivalência exclusiva entre o discurso de esquerda — pelo menos, aquele que é mais audível nos tempos que correm — e as incidências normativas do politicamente correcto. Esta identificação, que tem uma parte legítima e outra parte que é a criação de um fantasma, deixou a esquerda armadilhada, na medida em que não consegue desembaraçar-se de uma objectivação negativa a que ela não consegue responder de maneira simétrica. Isto é: nomear alguém como politicamente correcto é sempre, em maior ou menor grau, proceder a uma acusação. Ninguém se define a si próprio, orgulhosamente, politicamente correcto porque isso já é codificar e diminuir a sua correcção. Em contrapartida, já é possível que alguém se assuma politicamente incorrecto, tirando benefícios dessa afirmação. Se alguém diz “sou politicamente correcto”, estas palavras são sempre entendidas como um distanciamento irónico; muito mais frequente é lermos ou ouvirmos dizer com jactância, como uma declaração presunçosa de rebeldia: “sou politicamente incorrecto”. E foi assim que chegámos a uma cenarização, onde se desenrola uma história que a direita conta com muito proveito e que a esquerda parece não ter capacidade de desmontar: uma história que fala de censura, de exasperado moralismo, de policiamento, de fixação de um léxico normativo, de restrições ao trabalho teórico e artístico. Em suma: a direita encontrou uma maneira de se apropriar do património histórico da esquerda e a esquerda deixou-se empurrar para uma zona que foi habitação privilegiada da direita. Esta história tem, portanto, a eficácia que lhe é conferida por um ingrediente narrativo muito sedutor: a inversão de papéis. Mas ela mostra também outra coisa: a existência de uma camada discursiva que permite retocar as ideias com cores que as tornam comuns e incontestáveis. Ainda há poucos dias (antes da remodelação ministerial), António Costa falava dos seus ministros como “activos” importantes da governação. “Activos”? Como é que o vocabulário e as metáforas de um primeiro-ministro, por mais que a eloquência e a sofisticação discursiva não sejam o seu forte, ficam condicionados por esta grelha codificada da novilíngua financeira e empresarial? Como é que ele não percebe que há nestas palavras uma mentira que não lhe pode ser autorizada porque é um linguajar ideológico que restringe ou até evacua a política como desejo e todas as aspirações que devemos exigir dela?