Nódoa Negra, um livro-barómetro no feminino sobre a dor
É uma antologia de banda desenhada, feita de narrativas pessoais e ficcionais sobre a dor, escrita e desenhada a 24 mãos — todas de mulheres. Nódoa Negra chega agora às bancas pela mão da Chili Com Carne.
Dileydi Florez queria falar sobre a dor. Porque, “tal como o amor, é comum a todo o ser humano”. Porque, “consciente ou inconscientemente”, todos a carregam. “E é preciso que venha cá para fora”, diz a autora e artista colombiana, a viver em Portugal desde 2001. É preciso exorcizar.
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Dileydi Florez queria falar sobre a dor. Porque, “tal como o amor, é comum a todo o ser humano”. Porque, “consciente ou inconscientemente”, todos a carregam. “E é preciso que venha cá para fora”, diz a autora e artista colombiana, a viver em Portugal desde 2001. É preciso exorcizar.
O tema já lhe tinha batido à porta com o doutoramento em Belas Artes, especialização em Desenho, à boleia do qual se tem dedicado a estudar os tabus e o desenho da genitália feminina — e não poderia ignorar as dores menstruais. Portanto, quando, no ano passado, a associação e editora Chili Com Carne lançou o concurso “Toma Lá 500 Paus” dedicado exclusivamente a antologias, a inspiração foi incontornável.
O projecto acabaria por ser o vencedor e assim nasceu Nódoa Negra, uma antologia de banda desenhada, feita de narrativas pessoais e ficcionais sobre a dor, escrita e desenhada a 24 mãos. Todas de mulheres. Poderiam ser de homens, afinal “a dor não tem género”, mas este acaba por ser um “livro no feminino”, devido às próprias influências de Dileydi. A jovem doutoranda de 28 anos segue, sobretudo, o trabalho de mulheres que, na sua opinião, têm “conseguido desenvolver um trabalho bastante coerente” no campo da novela gráfica — Power Paola, Julie Doucet e muita malta escutada no podcast La Polola e lida na revista Brígida são referências obrigatórias lá fora (aí está, uma vez mais, a prova do fervilhante circuito da América Latina).
Por cá, a mesma tendência. “A banda desenhada que me toca mais é a feita por mulheres”, confirma. Vai daí, viu também aqui uma forma de juntar nas mesmas páginas autoras-referência com autoras-emergentes, aproveitando a recente vaga de mulheres a mergulhar de cabeça na banda desenhada em Portugal.
Assim, ao longo de quase centena e meia de páginas a preto e branco, vemos Susa Monteiro, sem palavras, a pôr-nos olhos nos olhos com uma dor sufocante, seguida de Mosi, a benjamim do grupo, que pega na famosa lengalenga do cuco que não gostava de couves para nos falar da morte. Inês Cóias, que tem aqui a sua primeira grande aventura na banda desenhada, reflecte sobre a depressão, enquanto Cecília Silveira (da Sapata Press) narra um combate de boxe, que é bem mais do que isso. Se Bárbara Lopes fala do parto, Dileydi das dores menstruais e de ovários poliquísticos. Marta Monteiro, Inez Caria, Hetamoé, Sílvia Rodrigues e Patrícia Guimarães completam a lista de autoras, sem esquecer a jornalista e crítica literária Sara Figueiredo Costa, a única participação em prosa, a abrir o livro.
“Queríamos um texto, mas não uma introdução ou prefácio”, conta Dileydi. E Sara, profunda conhecedora do meio e de todas as pessoas envolvidas, não poderia dizer que não. “Como penetra, mas sem me sentir penetra”, diz, ao telefone com o P3, entre risos. “Numa escala de 0 a 10, quanto lhe dói?”, “estranha” pergunta tão veiculada nos filmes, serviu-lhe de ponto de partida para um questionamento entre a possibilidade de medir a dor psicológica ou emocional como a física. “Se calhar pode ter um peso igualmente forte, não são assim tão diferentes” — e, pelo meio, meteu-se o trabalho do neurocientista Jaak Panksepp a dar-lhe razão.
São 12 histórias de diferentes tipos de dor feitas a 24 mãos — mesmo, pois desde Outubro do ano passado que as 12 andam em contacto, físico ou virtual, a partilharem processos ou esboços. Isto num livro que, espera Dileydi, também pode ser um barómetro do trabalho delas por cá. “É importante serem mulheres”, concorda a jornalista, recordando-se das edições iniciais do Amadora BD em que elas mal se viam (excepção feita a Alice Geirinhas, Ana Cortesão ou Teresa Câmara Pestana). Agora, começam a surgir novos nomes. Porquê? Responde Sara: “Tem sobretudo a ver com um espaço que não é reclamado e que muitas vezes é negado. E para o fazer, temos de criar esses espaços e reclamá-los.”