Não à especialidade de Urgência e às equipas médicas exclusivas
A proposta da Ordem dos Médicos não é uma resposta adequada e competente para o tratamento do doente agudo em Portugal.
O senhor bastonário da Ordem dos Médicos declarou há dias a intenção de formar uma “comissão para estudo da criação de uma especialidade de Urgência”. Registamos com desagrado e preocupação esta tomada de posição, que consideramos não ser a resposta adequada e competente para o tratamento do doente agudo em Portugal.
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O senhor bastonário da Ordem dos Médicos declarou há dias a intenção de formar uma “comissão para estudo da criação de uma especialidade de Urgência”. Registamos com desagrado e preocupação esta tomada de posição, que consideramos não ser a resposta adequada e competente para o tratamento do doente agudo em Portugal.
As urgências dos hospitais sofrem de disfunções graves do sistema de saúde. Todo o tipo de situações lá chega – desde o doente grave ao não grave, inclusive o caso social puro, por ser aquela a porta que nunca está fechada. Por isso, se não houver mudanças reais, em que cada entidade tenha de assumir as responsabilidades inerentes à sua missão natural (centros de saúde, hospitais, Segurança Social), os Serviços de Urgência (SU) continuarão superlotados, com tempos de espera inaceitáveis.
Artigos de opinião, veiculando as palavras de supostos especialistas em urgência, alvitram, como solução para o problema, a criação de equipas médicas exclusivas de urgência e, como consequência natural, a criação da especialidade de Urgência. Para o público em geral, a ideia pode parecer ser eficaz, colocando mais médicos disponíveis para o atendimento. Aos políticos, em tempo de eleições, também será interessante pôr mais “batas brancas” nos SU, encontrando em simultâneo uma solução, a nosso ver falaciosa, para os 300 médicos não colocados no exame de acesso à especialidade, mas não intervindo nas verdadeiras disfunções do sistema.
Aos olhos de quem trabalha na urgência, esta via é uma completa mistificação. O caos instala-se no SU sempre que os doentes chegam às centenas, porque não têm alternativas credíveis de qualidade onde possam recorrer. A situação torna-se ingovernável, quando se esgota a capacidade de internamento e os doentes são tratados nos corredores do SU, como se estivessem nas enfermarias.
A profissionalização das equipas de Urgência não é a solução para o SU sobrelotado. Para a Sociedade Portuguesa de Medicina Interna, a aplicação cega do modelo estrito de equipas médicas dedicadas tem enormes riscos em Portugal:
– O número de doentes que recorre ao SU é muito elevado, por falta de resposta dos cuidados primários, ao contrário do que acontece noutros países;
– Em Portugal, o doente chega por regra à Urgência sem qualquer tipo de triagem médica ou contacto com o médico assistente, pelo que é crucial a abordagem clínica global garantida pelo internista;
– Mais de 90% dos internamentos hospitalares são feitos através do SU, pelo que é fundamental a presença dos médicos dos serviços hospitalares na Urgência, única forma de garantir a continuidade de cuidados e, em suma, a qualidade assistencial;
– O médico “urgencista” entra em exaustão em poucos anos, pelo que o modelo não perdura no tempo e a própria noção de carreira está comprometida à partida;
– O “urgencista” ganha o hábito de tratar o doente agudo por algoritmos, o que é bom na emergência, mas perde com o tempo a capacidade de projetar o raciocínio clínico para além da situação aguda e de a enquadrar no doente como um todo;
– O doente tipo do SU é o idoso com polipatologia crónica, que necessita não apenas do tratamento da doença aguda mas também do enquadramento desta com as outras patologias coexistentes, precisando, por isso, de médicos que, como os internistas, avaliem globalmente o doente.
A Sociedade Portuguesa de Medicina Interna espera que o senso impere para que as causas reais da sobrelotação das urgências possam ser identificadas e minimizadas. Os internistas continuarão a ser o garante do funcionamento dos Serviços de Urgência e fazem-no com grande dedicação e competência.
Devemos resistir às soluções eleitoralistas fáceis, que nada resolvem. As decisões de hoje têm de ter em conta a nossa realidade, em que o recurso da população ao SU é o dobro da média dos países da OCDE, maioritariamente por doença aguda médica, e não doença cirúrgica, trauma ou emergência, como nos países onde a especialidade de Urgência foi imaginada.
A importação de modelos de outros países não pode ser descontextualizada. Basta pensar que em muitos desses países existe acesso garantido aos cuidados primários no caso da doença aguda não emergente.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico