É urgente repensar o telejornal
A RTP tem pouco a ver com uma televisão de serviço público. Os poderes públicos deveriam pois refletir sobre o seu futuro...
Enquanto dura a truanice em torno da direção da informação, seria bom que nos interrogássemos sobre o jornalismo que a RTP pratica nos seus telejornais. E sobre a qualidade da informação a que deveríamos ter direito, de modo a justificar a existência de uma televisão pública.
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Enquanto dura a truanice em torno da direção da informação, seria bom que nos interrogássemos sobre o jornalismo que a RTP pratica nos seus telejornais. E sobre a qualidade da informação a que deveríamos ter direito, de modo a justificar a existência de uma televisão pública.
Os telejornais da RTP1 são exageradamente longos, duas a três vezes mais do que os das congéneres europeias. Não porque os assuntos sejam abordados de maneira mais aprofundada. Antes pelo contrário: é a superficialidade que os carateriza. Tanto pela hierarquização adotada como pela diversidade temática limitada, como ainda pelo tratamento jornalístico elementar praticado.
A hierarquização dos factos é geralmente chocante. É verdade que não há ciência exata nenhuma nesta matéria e que posicionamentos editoriais diferentes explicam opções diferentes. Mas na RTP1 as grandes constantes são: a atualidade sensacional (crime, acidente, calamidade natural, decisão com repercussões negativas na vida dos cidadãos...), a politiquice partidária (seguimento reverente das deslocações e declarações — quantas vezes desprovidas de interesse — de líderes políticos) e a atualidade futebolística (com um desfile diário obrigatório de treinadores, jogadores ou presidentes, quando não de adeptos). Três matérias intercambiáveis no sumário como no alinhamento do telejornal.
Outra grande caraterística dos telejornais são “diretos” raramente justificáveis, simples ligações com “repórteres” que a maior parte das vezes nada viram, nada filmaram e, evidentemente, nada montaram. A “reportagem” é constituída pela imagem deles, mais, boa parte das vezes, a entrevista do presidente da junta ou câmara municipal, do chefe dos bombeiros, da PSP ou da GNR, dos advogados do “caso”, e por vezes uns “populares” de preferência chorões ou berrões!
Aproveitando esta estranha conceção dos “diretos” (que são em muitos aspetos a antítese mesmo do jornalismo), o telejornal é invadido por uma série de espertalhões. Porque, como por acaso, têm declarações importantes a fazer precisamente durante o telejornal... evitando assim a natural seleção de passagens das ditas declarações por parte da redação.
A reportagem quase não existe. Como quase não existe a mais elementar pedagogia para explicar, por exemplo, assuntos de caráter económico e financeiro. Para além da imagem do jornalista, mais as eternas imagens da entrada do Ministério da Finanças e o não menos eterno plantão à porta do ministério, os grafismos e quadros adequados ao assunto são raros.
Os faits divers constituem grande parte da atualidade estrangeira e tratam sobretudo dos EUA. Aliás, as raras peças consagradas ao estrangeiro e ao internacional têm geralmente por origem agências de imagens estado-unidenses. E estas preocupam-se antes do mais com a clientela do mundo anglófono e, desde logo, propõem uma visão largamente anglo-americana da atualidade. Enquanto os países da União Europeia, de que fazemos parte, são manifestamente descurados. Como é em geral negligenciado um elementar enquadramento de toda esta atualidade.
As atualidades “societal” e cultural são largamente ignoradas. Mas a futebolística é dada diariamente uma importância descomedida. Com intermináveis declarações nos dias antes, no próprio dia do encontro e nos dias que se seguem. Com enviados especiais para os mais longínquos países e encontros de somenos importância. Com um acompanhamento do que se passa em países onde se encontram jogadores ou treinadores portugueses! Quando em televisões públicas europeias, durante dias a fio, a atualidade futebolística nem sequer é abordada...
Espectadores benevolentes dirão que o telejornal da RTP2 “é melhor”, mais curto, melhor hierarquizado. Mas como justificar que numa televisão “culta e adulta” se vejam sequências com a mesma montagem de imagens e o mesmo comentário “off” da RTP1? Que significa então um posicionamento sociocultural diferente dos canais?
Contrariamente ao que por aí se afirma muitas vezes, 40 anos depois da desmonopolização do sector na Europa, a existência de uma televisão pública continua a ter razão de ser. Partindo do princípio que ela nos proponha uma programação e uma informação claramente distintas daquelas das televisões privadas. Não é o caso da RTP. Conviria pois que parlamentares e Governo decidissem refletir sobre o assunto e impor-lhe um caderno de encargos indubitavelmente de serviço público... Professor emérito de Informação e Comunicação da Université Libre de Bruxelles, autor do livro Teoria da Informação Jornalística (Almedina)