O Museu Nacional de Arte Antiga e a proposta de autonomia para os museus nacionais
Entendem os conservadores, técnicos, bolseiros e colaboradores do MNAA pronunciar-se sobre uma matéria que afeta diretamente o quotidiano da instituição.
Afirmou o primeiro-ministro, no Dia Internacional dos Museus (18 de Maio), que seria introduzido, em 2019, um novo modelo de gestão e autonomia nos museus dependentes da Direção-Geral do Património Cultural (DGPC). As palavras foram bem recebidas pela generalidade dos seus profissionais, conscientes de que a sua missão — conservação, estudo, divulgação e disponibilização dos bens que estão à sua guarda — beneficiaria com uma gestão menos dependente de uma tutela cada vez mais burocrática e objetivamente pouco eficiente. Menos de dois meses após as declarações de António Costa, o Ministério da Cultura apresentou às associações do sector um projeto de decreto-lei sobre um novo modelo de gestão e autonomia para os museus, monumentos e sítios arqueológicos que tem gerado controvérsia mas que, com mínimas alterações, parece estar prestes a ser levado a Conselho de Ministros para aprovação. O documento reconhece que a atual arquitetura da DGPC "não permite uma política cultural que dê cabal cumprimento aos valores e princípios consagrados, quer na Constituição, quer na lei"; resta saber se resolve os problemas de funcionamento das instituições.
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Afirmou o primeiro-ministro, no Dia Internacional dos Museus (18 de Maio), que seria introduzido, em 2019, um novo modelo de gestão e autonomia nos museus dependentes da Direção-Geral do Património Cultural (DGPC). As palavras foram bem recebidas pela generalidade dos seus profissionais, conscientes de que a sua missão — conservação, estudo, divulgação e disponibilização dos bens que estão à sua guarda — beneficiaria com uma gestão menos dependente de uma tutela cada vez mais burocrática e objetivamente pouco eficiente. Menos de dois meses após as declarações de António Costa, o Ministério da Cultura apresentou às associações do sector um projeto de decreto-lei sobre um novo modelo de gestão e autonomia para os museus, monumentos e sítios arqueológicos que tem gerado controvérsia mas que, com mínimas alterações, parece estar prestes a ser levado a Conselho de Ministros para aprovação. O documento reconhece que a atual arquitetura da DGPC "não permite uma política cultural que dê cabal cumprimento aos valores e princípios consagrados, quer na Constituição, quer na lei"; resta saber se resolve os problemas de funcionamento das instituições.
Depois de o diretor e de o Grupo dos Amigos do Museu Nacional de Arte Antiga terem expressado publicamente posições críticas sobre este projeto de decreto-lei, entendem, unanimemente, os conservadores, técnicos, assistentes técnicos administrativos, bolseiros e colaboradores do MNAA dever pronunciar-se sobre uma matéria que afeta diretamente o seu trabalho e o quotidiano da instituição.
No documento tem, desde logo, levantado dúvidas a reunião de várias instituições em unidades compósitas, obedecendo a critérios casuísticos, que resultam, frequentemente, em associações incompreensíveis, do ponto de vista da natureza das entidades reunidas e da sua escala. É, obviamente, o caso da associação ao MNAA da Casa-Museu Anastácio Gonçalves, cujo edifício foi ateliê do pintor José Malhoa e cujas coleções complementam as do Museu Nacional de Arte Contemporânea (que, por seu lado, passará a gerir o Museu Malhoa, nas Caldas da Rainha...).
As questões mais preocupantes são, porém, outras: o entendimento da autonomia como uma mera "delegação de competências" no diretor das instituições; o funcionamento dos organismos dependente de orçamentos anuais da tutela, sem lhes conferir identidade fiscal e personalidade jurídica que permitam uma gestão de meios e de recursos plurianuais, essenciais à sua atividade ou a uma ágil gestão corrente; a criação de uma estrutura jurídica complexa, na articulação com a legislação vigente e com a reforma administrativa que se perspectiva. Um documento assinado por um grupo de juristas, encabeçado por Diogo Freitas do Amaral, é claro ao afirmar que "tudo isto causará não só maior lentidão de decisão dos diretores, mas também muito mais carga administrativa da Direção-Geral". Não foi menos límpido o diretor do Palácio Nacional da Ajuda, e presidente da delegação portuguesa do ICOM, ao declarar ao PÚBLICO (29/07/2018) que "sem um número de contribuinte próprio para o palácio que me permita contratualizar sozinho as despesas, toda esta autonomia é sobretudo teórica. Tenho de esperar pela casa-mãe na mesma, não posso fazer nada".
Nas últimas duas décadas, quase todos os museus estrangeiros de alguma dimensão alteraram o seu modelo de gestão para se adequarem a novas realidades decorrentes do aumento da procura de produções culturais e da expansão dos seus públicos (já não um restrito grupo de interessados, mas um leque muito mais amplo, resultante do incremento da educação e do turismo). Semelhante situação obrigou à captação de novos recursos e formas de financiamento, para além das dotações orçamentais, provenientes de receitas próprias, do mecenato, de programas financiados por instituições científicas, de fundos promotores do turismo ou de projetos internacionais. Os modelos diferem, mas todos têm em comum os aspetos essenciais da verdadeira autonomia e agilidade de gestão, do financiamento plurianual, da manutenção na esfera pública dos bens, coleções e recursos humanos dos museus, da prossecução do serviço público e da fiscalização, a jusante e a montante, da atividade administrativa e cultural produzida. Mesmo ao nível nacional, as mais dinâmicas instituições criadas nas últimas décadas, como Serralves ou o CCB, obtêm o financiamento público através de dotações plurianuais, agregando outros recursos com enorme liberdade de gestão, tal como o fazem teatros nacionais, orquestras, etc., cuja produção de riqueza objetiva para o país é manifestamente superior à verba que geram pelo número de bilhetes vendidos ou pela gestão do seu espaço. O que não faz sentido, a nosso ver, é considerar-se, por exemplo, que a verba alocada a Serralves pelo Estado (mais do dobro do orçamento do MNAA) é um necessário investimento na cultura com evidente retorno, que o é, e entender-se, ao invés, que o investimento no MNAA se destina a suprir as necessidades de uma instituição "altamente deficitária", como é frequentemente afirmado pelo Ministério da Cultura.
Criado depois da implantação da República, mas herdeiro, nas coleções, na orgânica e no próprio edifício, do antigo Museu Nacional de Belas-Artes e Arqueologia, inaugurado por D. Luís I, em 1884, o MNAA incorpora os espólios relevantes decorrentes da extinção das Ordens Religiosas e das compras da Real Academia de Belas-Artes, aos quais foi somada parte das coleções reais, no sentido de criar um museu fortemente identitário, que espelhasse a história e a riqueza patrimonial do país, à semelhança dos que haviam nascido por toda a Europa. Dele emanou a sucessiva criação de outros museus nacionais, mantendo, durante décadas, um papel único na gestão de outros museus e palácios ou nas áreas da conservação e restauro e da formação. Se estes aspetos se alteraram com a modernização administrativa e técnica dos museus, a dimensão, a missão e a diversidade das coleções continuam a fazer do MNAA um museu com características particulares no tecido nacional, com tarefas (e também problemas) muito próprios.
Desde 2010, o MNAA atingiu um reconhecimento interno e externo que constitui um enorme capital que urge não desbaratar. Mesmo com os constrangimentos orçamentais e administrativos conhecidos, com sérias carências de recursos humanos e num edifício à beira da rutura, consolidou um nível de oferta sem precedentes: 112 exposições (das quais, sete no estrangeiro), 57 catálogos, mais de 500 obras de arte em circulação só em 2017. A tudo isto podem acrescentar-se visitas e atividades para milhares de pessoas e centenas de escolas, nacionais e estrangeiras, projetos de investigação, respostas a investigadores, uma renovação permanente dos espaços, importantes aquisições ou a conservação e restauro das diversas coleções, a um ritmo nunca antes alcançado.
Não precisa o MNAA, no nosso entender, de um modelo de delegação de competências para continuar a gerir, "no fio da navalha" e em navegação à vista, uma dotação orçamental insuficiente. Necessita, sim, de criar verdadeiros mecanismos de gestão, que permitam captar recursos que conduzam ao seu crescimento e de condições que sirvam a sua função, dignifiquem o nosso trabalho e melhorem o serviço público. Na verdade, trata-se apenas de saber se o país deseja ter um Museu Nacional que cumpra, efetivamente, esse papel.
MNAA, 9 de Outubro
Os conservadores, técnicos, assistentes técnicos administrativos, bolseiros e colaboradores do MNAA:
Adelaide Lopes
Agostinho Oliveira
Alexandra Gomes Markl
Ana Kol
Ana Rita Gonçalves
Ana Sousa
André Afonso
Andrea Cardoso
Anísio Franco
Celina Bastos
Clara Sousa
Conceição Ribeiro
Elsa Nascimento
Emília Marcos
Inês Silva
Inocência Neves
Irina Duarte
João Domingos
Joaquim Oliveira Caetano
José Alberto Seabra Carvalho
José Manuel Martins Carneiro
Luís Montalvão
Luísa Penalva
Margarida Veiga
Maria da Conceição Borges de Sousa
Maria João Vilhena de Carvalho
Marta Carvalho
Miguel Soromenho
Patrícia Milhanas Machado
Paula Brito Medori
Paulo Alexandrino
Ramiro Gonçalves
Rui Mestre
Rui André Trindade
Sofia Júlio
Susana Campos
Teresa Serra e Moura
Os autores escrevem segundo o novo Acordo Ortográfico