Serralves no Parlamento: administração e Ribas mantêm versões contraditórias
João Ribas e administração de Serralves foram esta tarde ouvidos na comissão parlamentar de Cultura. Ribas falou em “actos específicos de censura” e fez o calendário das alegadas intromissões da comissão executiva da fundação no guião de Robert Mapplethorpe: Pictures. A administração garantiu que não interferiu na exposição do norte-americano e acusou o ex-director de "deslealdade".
Quando a presidente da comissão parlamentar de Cultura, Edite Estrela, perguntou esta terça-feira à tarde aos deputados se sentiam que havia necessidade de uma segunda ronda de perguntas à administração de Serralves, a maioria respondeu que já estava esclarecida, nomeadamente os deputados do PS, PSD e CDS, depois de uma sessão que tinha começado três horas e meia antes com a audição de João Ribas, o ex-director do Museu de Serralves.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Quando a presidente da comissão parlamentar de Cultura, Edite Estrela, perguntou esta terça-feira à tarde aos deputados se sentiam que havia necessidade de uma segunda ronda de perguntas à administração de Serralves, a maioria respondeu que já estava esclarecida, nomeadamente os deputados do PS, PSD e CDS, depois de uma sessão que tinha começado três horas e meia antes com a audição de João Ribas, o ex-director do Museu de Serralves.
Já os deputados do PCP e do BE, que também prescindiram de fazer novas perguntas, acrescentaram que precisavam de “digerir” as duas sessões, nas palavras de Ana Mesquita, do PCP, para tirarem as suas conclusões. “Ficámos esclarecidos”, reconheceu Jorge Campos, do BE, mas acrescentando que as explicações da administração de Serralves não o inibiam de achar que “há aqui duas versões dos acontecimentos”. E interpelando directamente José Pacheco Pereira, um dos seis membros da administração presentes, concordou que não teria havido censura na forma como o historiador se referira a ela — isto é, num sentido comparável à da censura exercida durante o Estado Novo —, mas defendeu que “há muitas maneiras de censurar”.
A discussão chegou ao parlamento, a pedido do Bloco de Esquerda e do PS, que quiseram ver esclarecidos os contornos da demissão de João Ribas, que surgiu na sequência de acusações de interferência por parte da administração na montagem da exposição que o Museu de Serralves dedica ao fotógrafo norte-americano Robert Mapplethorpe.
José Magalhães, do PS, comentaria que “é impossível convencer os inconvencíveis” e acrescentou que “censura é uma palavra séria e grave”, observação que também a centrista Teresa Caeiro repetira várias vezes durante a audição.
Os deputados pareciam estar a responder ao repto de Pacheco Pereira: “Não desejo qualquer solução salomónica, não tem sentido, porque nós apresentámos documentos, e não meras opiniões”, afirmou o administrador, concluindo com um apelo: “Eu gostaria que os senhores deputados, exactamente em nome da liberty, ajudassem a acabar com esta questão que prejudica Serralves.”
Pacheco Pereira evocava uma resposta de João Ribas, cuja audição começara poucos minutos depois das 14h. Quando o deputado socialista José Magalhães se referiu à comédia de Shakespeare Much Ado About Nothing para sugerir que o ex-director teria feito muito barulho por nada, Ribas afirmou que tinha “much ado about liberty”, e que a liberdade era para ele um “grande something”.
“Nós não queremos sair daqui sem que seja bem claro que não houve censura”, disse ainda Pacheco Pereira. Teresa Caeiro já antes defendera que era essa a questão central que os deputados deveriam procurar esclarecer.
João Ribas, horas antes, quando questionado se o termo censura era aplicável, observou: "Em bom latim, no meu entendimento, a censura é a condenação ou reprovação de certas obras artísticas. Houve a reprovação de duas obras, que não se permitiu que fossem expostas, e isso para mim é censura".
Além das questões semânticas acerca do que é e não é censura, uma das perguntas que ficou por esclarecer na cronologia dos acontecimentos é quem terá “obrigado” o ex-director, nas palavras do próprio João Ribas, a tirar duas fotografias que este finalmente identificou no Parlamento. Nem Ribas nomeou quem lhe fez o pedido, nem a administração esclareceu, cabalmente, se o tinha feito, ainda que afirmando reiteradamente que nenhum membro da administração tirara fotografias das paredes.
No final da audiência, Pacheco Pereira reconheceu, no entanto, ao PÚBLICO que a administração tinha sugerido que as fotografias saíssem do espaço sem restrições de idade e passassem para as duas salas com acesso reservado: “Isso é natural, mas agora nós não somos responsáveis por elas não terem sido colocadas. Isso não é o nosso problema.” O facto de o curador não concordar com essa versão dos acontecimentos é para o administrador de Serralves contraditório com o facto de Ribas ter inaugurado a exposição. “O curador assinou a forma final da exposição quando a apresentou à imprensa com grande sucesso.”
João Ribas tinha afirmado ao início da tarde que a comissão executiva da Fundação de Serralves, presidida por Ana Pinho, interferiu várias vezes na montagem da exposição dedicada ao artista norte-americano Robert Mapplethorpe.
Fazendo o calendário das alegadas intromissões da referida comissão, Ribas falou de “actos específicos de censura”, sublinhando, em particular, o facto de ter sido por ela obrigado a retirar da exposição duas obras que estavam já na parede —Dennis Speight (1980) e Larry (1979). É a primeira vez que João Ribas nomeia as obras que a 26 de Setembro, em comunicado, mencionava já como tendo sido objecto de exclusão na sequência de uma ordem directa da administração da fundação.
No dia 17 de Setembro, lembrou em resposta ao deputado Jorge Campos que terá sido chamado pela comissão a “construir um muro” para separar algumas fotografias e a “refazer parte da exposição”, muito provavelmente para garantir a possibilidade de criar espaços de acesso reservado. A 18 foi convocado a “relocalizar obras” e a voltar a mexer no layout expositivo e no dia seguinte, data em que chegaram os representantes da Fundação Robert Mapplethorpe, a palavra “cancelada” chegou a ser usada (por quem, o antigo director não especificou). A 20 de Setembro, uma hora antes da conferência em que Robert Mapplethorpe: Pictures seria apresentada aos jornalistas, ter-lhe-ão mandado retirar da parede as duas obras já mencionadas.
“As ingerências [da administração] terminaram a 20 com a ordem para retirar as duas obras. Foi a gota de água”, disse Ribas. “Tentei contornar [as limitações impostas], mas não pactuar”, acrescentou. “Demiti-me porque não podia admitir.”
A decisão de deixar a direcção artística do Museu de Serralves foi, assegurou Ribas, “complicada” e “muito ponderada”. Difícil foi também inaugurar a exposição depois do clima de “tensão” instalado entre o director e a administração. Por que razão decidiu, então, Ribas adiar a sua demissão para o dia seguinte à inauguração de Robert Mapplethorpe: Pictures?
“Tive de me conter para evitar um mal maior”, respondeu Ribas, considerando que o interesse do público de Serralves tinha de ser a sua prioridade. Por mais “insuportável” que fosse a “tensão” criada pelas “ingerências” da administração, o importante era mostrar o trabalho do artista norte-americano, que em Serralves tem agora aquela que é a primeira retrospectiva em Portugal. E para que ficasse claro, reiterou: “O cancelamento da exposição estava em causa.”
Quem evocou essa possibilidade, Ribas não disse. Remetendo para o acordo de confidencialidade que celebrou com a fundação, garantiu apenas que não foi ele nem a administração a falar num eventual “cancelamento”.
20 fotografias de fora
Teresa Caeiro, deputada do CDS, quis saber por que razão ficaram de fora da exposição 20 das fotografias que faziam parte do guião original e cuja taxa de cedência por parte da Fundação Mapplethorpe Serralves pagou. João Ribas explicou essa exclusão com a necessidade de refazer por três vezes a exposição, mercê das “ingerências” da administração. “Ingerências” que, esclareceu novamente, o obrigaram a retirar duas obras e a deslocar outras para os espaços de acesso condicionado, reformulando o discurso expositivo.
Aludindo ao alegado “mal-estar” que existia já entre Ribas e a administração antes da exposição de Mapplethorpe, Jorge Campos lembrou aos colegas de comissão que o que está em causa no caso de Serralves é o entendimento que a fundação tem da “função do curador” (João Ribas era simultaneamente director e curador de várias exposições).
Ribas, sem surpresas, concordou: “Não há ninguém que diga que a violação da liberdade criativa e da autonomia do director é aceitável numa instituição cultural. […] Houve uma pressão intolerável que quebra todos os princípios.”
Com ou sem aviso?
Durante toda a audição parlamentar, João Ribas foi chamado a esclarecer uma e outra vez as mesmas questões. Entre elas estão as que dizem respeito à sinalética que informava os potenciais visitantes sobre os conteúdos sensíveis e mesmo “chocantes” (a palavra foi usada por Serralves) de algumas das obras expostas. Concorda com a existência de sinalética? Ponderou uma retrospectiva de Robert Mapplethorpe sem qualquer informação sobre os conteúdos?
Recorde-se que, quando a exposição abriu, havia um aviso junto a duas salas impedindo o acesso a menores. Esse aviso entretanto foi alterado para que nessas salas possam entrar pessoas com menos de 18 anos desde que acompanhadas por um adulto (limitação que, aliás, é comum a toda a exposição).
“Houve duas ou três alterações a esse aviso. Neste momento não sei qual é a sinalética. Não fui eu que decidi. Não é uma sinalética que faça sentido algum. [A inicial] foi retirada porque não havia legislação [que a enquadrasse]”, disse Ribas aos deputados. Isto não significa, no entanto, que o então director se opusesse a que os visitantes fossem informados sobre o que se preparavam para ver. “O plano era uma sinalética sensata e um assistente de sala a chamar a atenção para os conteúdos”, esclareceu o ex-director. Uma sinalética, acrescentou, que seguia os padrões habituais de Serralves e que recomendava que os menores fossem acompanhados por um adulto.
No começo da sua intervenção, João Ribas evocou o seu currículo de curador nos Estados Unidos e lembrou que regressou a Portugal para assumir a subdirecção do Museu de Serralves quando este era liderado pela australiana Suzanne Cotter. Concorreu ao cargo de director depois de a própria administração da Fundação lhe ter sugerido que o fizesse. A mesma administração que, garantiu, recebeu “de forma muito entusiástica” a possibilidade de expor a obra de Mapplethorpe, uma “referência da arte do século XX”, um artista que considera ser “controverso, mas também um classicista”. A mesma administração que, em meados de Setembro, terá feito com que Ribas sentisse que "não tinha condições" para continuar a ser director artístico.
A versão da administração
As contradições entre os relatos feito pelo ex-director do museu e pela administração nas três horas e meia de audições foram várias vezes apontadas pelos deputados.
Ana Pinho, presidente da Fundação, e Pacheco Pereira encarregaram-se, no essencial, de transmitir a versão de Serralves. E repetiram uma e outra vez que não houve censura alguma nem qualquer tipo de ingerência na exposição do artista norte-americano. O que houve foi “respeito e prudência com a obra de Mapplethorpe".
Todas as decisões relativas ao que expor foram tomadas pelo curador João Ribas, garantiu Pinho, que voltou a dizer que não compreendia por que razão tinha o ex-director dito ao PÚBLICO, a uma semana da inauguração, que não haveria “salas especiais” (de acesso condicionado) em Robert Mapplethorpe: Pictures.
"João Ribas revelou imaturidade e deslealdade", acrescentou. "Disse aos jornais o que não disse à administração e à administração o que não disse aos jornais.” Ao contrário do que foi sendo dito, sublinhou, o conselho de administração não retirou nem mandou retirar nenhuma obra. “O que houve foi uma total contradição entre o que estava combinado [com o director] e o que foi publicamente manifestado num jornal. A partir daí o conselho de administração teve de perguntar o que se passava e teve de garantir que o que estava combinado seria feito."
João Ribas, que compareceu na audição acompanhado pelo seu advogado, não respondeu a perguntas de jornalistas no final da sessão.