Longitude: um problema científico e tecnológico
Conseguir medir a longitude nas viagens marítimas tornou-se uma questão científica premente. Importantes prémios científicos foram propostos nos séculos XVI, XVII e XVIII para obter soluções viáveis.
Parece ter sido Eratóstenes, no século III a.C., quem primeiro propôs o sistema de duas coordenadas geográficas, uma grelha de latitude e longitude, para determinar a posição de um lugar à superfície da Terra, actualmente um sistema tão bem conhecido. Enquanto o cálculo da latitude não oferece desafio de maior, para tal bastam simples observações astronómicas, a determinação da longitude é muito mais complicada. Além disso, as técnicas para estimar a longitude em terra, já conhecidas desde a antiguidade, não funcionam quando o observador está em alto-mar.
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Parece ter sido Eratóstenes, no século III a.C., quem primeiro propôs o sistema de duas coordenadas geográficas, uma grelha de latitude e longitude, para determinar a posição de um lugar à superfície da Terra, actualmente um sistema tão bem conhecido. Enquanto o cálculo da latitude não oferece desafio de maior, para tal bastam simples observações astronómicas, a determinação da longitude é muito mais complicada. Além disso, as técnicas para estimar a longitude em terra, já conhecidas desde a antiguidade, não funcionam quando o observador está em alto-mar.
Note-se que um dos aspectos mais fascinantes da expansão marítima europeia nos séculos XV e XVI, que ainda hoje causa perplexidade a muita gente, se deve ao facto de essas grandes viagens não terem recorrido ao conhecimento da longitude. O mundo foi explorado e cartografado pela primeira vez em toda a sua extensão sem recurso à medição da longitude dos lugares. Como foi isto possível? E que pensaram os navegadores e cartógrafos da época acerca dessa limitação?
Foi nas primeiras grandes viagens oceânicas no século XV que a latitude começou a ser medida no mar, utilizando versões simplificadas dos instrumentos da astronomia terrestre (astrolábios, quadrantes, etc.) e tabelas muito simples com a posição dos corpos celestes. Antes destas viagens, a posição do navio era determinada pelo método de rumo e estima. O rumo era fornecido pela bússola marítima (agulha de marear) e a estima era o cálculo mental da distância percorrida ao longo de um percurso, dentro de determinado intervalo de tempo.
Contudo as direcções fornecidas pela agulha de marear eram afectadas pela declinação magnética, isto é, o Norte indicado pela agulha não coincidia, em geral, com o Norte geográfico. Por outro lado, a estimação do caminho percorrido era pouco rigorosa considerando os variados factores que influenciavam a velocidade do navio. Desta forma, situar lugares nas cartas náuticas resultava em posições de latitude bem determinadas, mas em posições de longitude e distâncias incorrectas. A isto se deve o facto de as cartas apenas indicarem a latitude e, mesmo assim, este registo só começou a aparecer após o ano de 1500 aproximadamente.
Assim, o problema de conseguir medir – ou, pelo menos, estimar – a longitude nas viagens marítimas tornou-se uma questão científica premente. Durante os séculos XVI e XVII foram inúmeros os homens que o tentaram resolver, pelas mais diversas técnicas. Importantes prémios científicos foram propostos para obter soluções viáveis: Filipe II de Espanha propôs um prémio em 1567, que foi renovado e aumentado pelo filho, em 1598; a Holanda propôs o seu em 1636 e a França em 1715; a Inglaterra viria a criar o Painel da Longitude em 1714, oferecendo um prémio de 20 mil libras; as próprias academias científicas, que começaram a surgir nos séculos XVI e XVII, tinham como um dos seus objectivos a solução deste problema.
Apesar de se conseguir determinar a longitude por meio da observação de eclipses desde a Antiguidade, estes processos não tinham grande utilidade em navegação, por estarem dependentes da ocorrência de fenómenos pouco frequentes. Eram precisamente estas necessidades da navegação que conferiam carácter de urgência à descoberta de uma técnica eficaz de medição da longitude. Consequentemente, em 1514, o alemão Johannes Werner propôs usar a distância angular entre a Lua e outros corpos celestes para o efeito, mas revelou-se ser um método pouco rigoroso por limitação de instrumentos na época.
Nesse mesmo ano, João de Lisboa propôs, no Tratado de Marear, o uso da variação da declinação magnética, facilmente medida a bordo. Supunha-se, na altura, que a declinação magnética era proporcional à longitude, mas D. João de Castro viria a mostrar que esta hipótese estava errada, baseando-se em medições feitas na sua viagem à Índia, em 1538. Uma nova proposta baseada no mesmo princípio foi feita em Portugal no século XVII, pelo padre jesuíta Cristóvão Bruno, que sugeria o cruzamento, sobre a carta náutica, de paralelos de latitude com linhas de igual declinação magnética. Esta ideia viria, mais tarde, a ser desenvolvida por Halley no século XVIII. No entanto, ainda no século XVII, Galileu propôs, com a ajuda do telescópio, o uso das luas de Júpiter como um relógio universal, mas os problemas associados à sua implementação a bordo frustrariam o seu uso em navegação. Este problema da medição da longitude em alto-mar persistiu ao ponto de no início do século XVIII, quando praticamente todas as costas do mundo já haviam sido cartografadas, ainda não se conseguir medir a longitude no mar!
O método que, finalmente, haveria de resolver esta dificuldade seria o da medição do tempo local e sua comparação com um tempo de referência. Considerando que a Terra demora 24 horas a fazer uma rotação completa em torno do seu eixo, e que o tempo em cada lugar é função da posição do Sol (e da esfera celeste) nesse lugar, é fácil de entender que a diferença entre os tempos locais está directamente associada às suas diferenças de longitude. Isto é, a cada hora de diferença entre os tempos locais corresponde uma diferença de 15 graus de longitude (360º / 24 = 15º). Assim, se for conhecida a diferença horária entre dois locais, saberemos a diferença de longitude entre si. O desafio era, pois, determinar a hora local. O método não recorria a nenhuma nova ideia especialmente engenhosa, mas sim (o que não é pouco) à capacidade de fabricar um relógio suficientemente exacto.
A invenção do relógio de pêndulo, no século XVII, viria a permitir contar o tempo com maior exactidão, mas as condições a bordo – o balanço e as variações de temperatura e humidade – barravam o seu uso. Finalmente, o relojoeiro inglês John Harrison teve sucesso com um relógio de molas – o primeiro cronómetro marítimo – em que os problemas associados à sua utilização em condições adversas foram resolvidos por expedientes mecânicos engenhosos. Vários modelos sucessivamente mais perfeitos e mais pequenos foram construídos por Harrison. O Painel de Longitude exigiu múltiplos ensaios no mar, o primeiro dos quais passou por Lisboa em 1736. Muitos outros se seguiram e, por fim, a resposta ao problema seria dada em 1761. Outros modelos de cronómetro marítimo, mais baratos do que o de Harrison, foram depois desenvolvidos, mas a solução prática estava encontrada.
É interessante constatar que algo para nós tão vital como a segurança da navegação marítima e a descrição geográfica do mundo só foram possíveis através do desenvolvimento de técnicas e de práticas cujos intervenientes eram pessoas de baixa condição social e científica: cartógrafos, pilotos e até relojoeiros.
Historiador de ciência
Esta série, às segundas-feiras, está a cargo do Projecto Medea-Chart do Centro Interuniversitário de História das Ciências e Tecnologia da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, que é financiado pelo Conselho Europeu de Investigação?