Política energética: menos mitos, mais factos
No sector energético, mais do que rendas excessivas, temos problemas sérios de falta de estratégia e transparência.
Temos assistido à controvérsia pública a propósito da Comissão Parlamentar de Inquérito ao Pagamento de Rendas Excessivas aos Produtores de Eletricidade. É um debate muito positivo pela importância da temática, diversidade de intervenientes e boa qualidade de muitos contributos. Mas abundam também opiniões mal fundamentadas e desinformação deliberada. Tentemos clarificar alguns mitos.
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Temos assistido à controvérsia pública a propósito da Comissão Parlamentar de Inquérito ao Pagamento de Rendas Excessivas aos Produtores de Eletricidade. É um debate muito positivo pela importância da temática, diversidade de intervenientes e boa qualidade de muitos contributos. Mas abundam também opiniões mal fundamentadas e desinformação deliberada. Tentemos clarificar alguns mitos.
Mito 1. A culpa da electricidade cara é das energias renováveis? Não. A nossa factura eléctrica tem quatro componentes principais: energia, redes, IVA e "custos de interesse económico geral" (CIEG, vulgo "rendas eléctricas"). Os apoios às energias eólica e solar representam 10% da factura; os subsídios a outras formas de electroprodução, principalmente hídrica e térmica (fóssil e biomassa), 18%; outros subsídios e taxas incluídos nos CIEG, 7% (total CIEG na factura doméstica: 35%). A energia, redes e IVA representam 29%, 17% e 19% do total. Note-se que a promoção das energias renováveis é um elemento indispensável de qualquer estratégia de descarbonização: faz todo o sentido apoiar formas de energia emergentes, auto-sustentáveis a prazo e com custos previsíveis (de resto, uma prática comum na UE).
Mito 2. Precisamos de aumentar a capacidade electroprodutora? Não. Com o actual mix eléctrico, o índice de cobertura (=capacidade disponível/ponta máxima) deve ser pelo menos 1,1 por motivo de segurança. De 2014 a 2017 este índice foi em média 1,7 com mínimo absoluto de 1,3 (é como carregar três pneus sobresselentes). Embora os usos da electricidade tendam a aumentar, a eficiência dos equipamentos e as capacidades de armazenagem e interligação vão melhorar: aumento de capacidade só iria onerar ainda mais os custos. As centrais termoeléctricas deverão ser substituídas progressivamente por energias renováveis descentralizadas, com destaque para o solar — cujo custo está a baixar e não tem limitações ao nível do recurso. O paradigma energético do século XXI é a rede inteligente de produtores-consumidores, os "prosumers".
Mito 3. Há alternativas de energia barata e limpa? Não. Todas as fontes de energia massificadas são caras e geram impactes ambientais relevantes. Algumas são especialmente danosas (nuclear, combustíveis fósseis, grandes barragens), mas nenhuma é barata ou isenta de impactes. A experiência demonstra que tentativas de baixar artificialmente os preços de energia e infra-estruturas têm maus resultados: desperdício de energia, multiplicação de custos futuros (p.e. dívida tarifária eléctrica ou rendas e portagens nas ex-SCUT). Também não faz sentido apoiar opções com má relação custo-eficácia e grandes impactes negativos (p.e. prospecção de petróleo, programa nacional de barragens, co-geração fóssil, termoeléctricas a biomassa).
Então estamos condenados a uma factura energética pesada? Não. A solução está escrita há décadas em todas as estratégias e programas internacionais e nacionais: eficiência energética. Porque se faz tão pouco? Porque as famílias e as PME não têm capital nem incentivos para investir, e as empresas grandes consumidoras de energia gozam de preços bonificados. A maioria das opções energéticas das últimas décadas (salvo raras excepções, como os programas VALOREN ou E4) foi desenhada de forma a beneficiar certos sectores (energia, banca, construção, automóvel), em detrimento da eficiência global do sistema. Nos últimos 30 anos, 95% dos apoios públicos ao sector energético foram para aumentos da capacidade de produção ou redes, só 5% para eficiência energética. A ineficiência torna-nos mais vulneráveis a influências não controladas, como o preço do petróleo ou as alterações climáticas. O consumo de energia está a diminuir há uma década, essencialmente pela evolução tecnológica. Com a tecnologia presente, Portugal tem um potencial de poupança energética economicamente interessante da ordem de 30% dos consumos actuais, em todos os sectores: portanto podemos baixar a factura pela via da eficiência. Mas para concretizar este potencial são necessários incentivos, p.e. sob a forma de benefícios fiscais às famílias e às empresas que investem em eficiência energética.
Política energética precisa-se! Esperemos que a Comissão de Inquérito consiga fazer luz sobre alguns negócios escuros no sector energético. Mas, tanto como a necessidade de transparência, o nosso grande problema continua a ser a falta de uma estratégia coerente.