Morreu Eduardo Arroyo, um nome maior da pintura espanhola do século XX

O pintor que quis "matar" Marcel Duchamp morreu neste domingo aos 81 anos, depois de uma vida cheia dedicada à pintura, à escultura, à cenografia, à ilustração e ao jornalismo.

Fotogaleria

Em 1965, um crítico francês organizou uma exposição em Paris, numa galeria particular, que recebia o ambicioso título de “A Figuração Narrativa na arte contemporânea”. Foi aqui que um jovem artista de 28 anos, Eduardo Arroyo, assinou com dois amigos também pintores um dos principais manifestos deste movimento: uma série de pinturas figurativas, obviamente, em que Marcel Duchamp era espancado e morto.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

Em 1965, um crítico francês organizou uma exposição em Paris, numa galeria particular, que recebia o ambicioso título de “A Figuração Narrativa na arte contemporânea”. Foi aqui que um jovem artista de 28 anos, Eduardo Arroyo, assinou com dois amigos também pintores um dos principais manifestos deste movimento: uma série de pinturas figurativas, obviamente, em que Marcel Duchamp era espancado e morto.

Arroyo, que considerava Duchamp (com Miró) um fenómeno de moda sem consequência de maior, ajustava assim contas com aquele que considerava ser um dos grandes embustes da arte do seu tempo. Mais tarde, já na década de 70, sem nunca renegar este seu gesto, diria que Duchamp representava tudo o que não “partilhava”: o laxismo, a facilidade, as “escolhas aproximadas, tudo o que andava no ar com a espontaneidade aproximada dos informalistas, o vanguardismo dos Novos Realistas, e o que se viu mais tarde na Body Art.”

Se estas condenações têm hoje um sabor levemente anacrónico, percebemos que elas visam sobretudo a arte pela arte, a arte que não se quer nem se deseja política. Quem assim falava, Eduardo Arroyo, morreu este domingo em Madrid aos 81 anos, depois de uma vida cheia dedicada à pintura, à escultura, à cenografia, à ilustração e ao jornalismo – foi autor de crónicas sobre o quotidiano cultural e político no jornal El País praticamente até à sua morte – e ao activismo político.

Nasceu em Madrid em plena guerra civil, em 1937. Com 21 anos, já profundamente anti-franquista, decidiu emigrar para Paris, como muitos jovens o faziam por razões políticas tanto em Espanha como em Portugal. Recorde-se, a título de curiosidade, que é também nesta altura que Lourdes Castro e René Bertholo, entre outros, chegam à capital francesa para aí se instalarem.

Eduardo Arroyo junta-se a um grupo de outros artistas franceses que, sob a égide do crítico Gérarld Gassiot-Talabot advogavam o regresso da narrativa ao seio da pintura. Queria isto dizer que a pintura podia transmitir uma mensagem explícita, compreensível por todos, e que nada tivesse a ver com a gratuidade, por exemplo, do expressionismo lírico ou da abstracção geométrica, exposta em muitas das montras de galerias da cidade e que a historiografia da arte designou pelo nome muito abrangente de Escola de Paris. A arte Pop, também destes tempos e também ela tantas vezes narrativa, não andava longe. Ainda em França, os representantes do governo espanhol retiraram-lhe tempos depois o passaporte, só lhe dando licença para voltar para Espanha em 1976. Na realidade, o pintor permaneceria em Paris até aos anos 80.

Ao todo, foram mais de duas décadas recheadas de peripécias e escândalos como hoje é quase inimaginável. Em 1960, ainda antes da pintura colectiva sobre Duchamp, tinha apresentado na Bienal de Paris um conjunto de retratos a que chamou Los quatro dictadores, com as efígies de Franco, Salazar, Hitler e Mussolini. A embaixada espanhola protestou e o artista foi proibido pelo regime franquista de expor em Espanha. Mais tarde, em 67, ataca a obra de Miró, substituindo todos os motivos pictóricos de A quinta por representações de tortura e dor.

Eduardo Arroyo realizou uma interpretação muito pessoal dos preceitos definidos na União Soviética para a arte realista, reflexão que partilhava com os seus colegas do movimento da Figuração Narrativa. Opta pela figura, sempre com um propósito interventivo e de comentário social à realidade política. Mas ao contrário do que sucedia então na antiga U.R.S.S., recusa-se a adoptar o estilo académico da antiga arte que os aristocratas coleccionavam.

Ele, que nunca se furtou a participar nos salões da Jovem Pintura e de se dar e colaborar com os seus contemporâneos, discutia avidamente o modo mais eficaz de transformar a sociedade através da arte. Maio de 68 pareceu confirmar as esperanças dessa geração, antes do desencanto que o confronto com a realidade que se seguiu trouxe inevitavelmente. Nada tinha verdadeiramente mudado com essa revolta.

A consagração veio ainda em França, antes do regresso definitivo a Madrid. Em 1982 teve uma grande retrospectiva no Centro Georges Pompidou, em Paris, e recebeu o Prémio Nacional de Artes Plásticas de Espanha. Hoje tem obras em todos os grandes museus espanhóis, do Reina Sofia ao IVAM de Valência, bem como no Museu Colecção Berardo, no Musée d’Art Moderne de la Ville de Paris e no MOMA de Nova Iorque. Mais modestamente, Lisboa pôde ver um pequeno conjunto de obras suas numa individual na Fundação Portuguesa das Comunicações em Lisboa, em 2006. Em 2000, o governo de Madrid concedeu-lhe a Medalha de Ouro ao mérito em belas-artes, marcando a reconciliação definitiva com o artista.