As mulheres que odeiam as mulheres
Se há componente desta história que é realmente perturbadora é o que espelhou do machismo profundamente incrustado nos portugueses.
Não há heróis inimputáveis. Não há santos que palmilhem a Terra. E Cristiano Ronaldo não é santo. Não pelo que alegadamente fez ou deixou de fazer naquele quarto de hotel. Não é santo porque é homem, porque é humano. E daí decorre que Ronaldo falha, ou pode falhar, como qualquer um dos restantes mortais. Não sei se é culpado, nem me cabe a mim aferir isso. Sei que existe essa possibilidade e não sei se essa ideia é algo que estejamos todos dispostos a admitir.
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Não há heróis inimputáveis. Não há santos que palmilhem a Terra. E Cristiano Ronaldo não é santo. Não pelo que alegadamente fez ou deixou de fazer naquele quarto de hotel. Não é santo porque é homem, porque é humano. E daí decorre que Ronaldo falha, ou pode falhar, como qualquer um dos restantes mortais. Não sei se é culpado, nem me cabe a mim aferir isso. Sei que existe essa possibilidade e não sei se essa ideia é algo que estejamos todos dispostos a admitir.
Este caso da alegada violação de Cristiano Ronaldo veio levantar o véu sobre duas questões culturais que devastam de forma sorrateira a sanidade sociocultural do país. Uma é o culto de personalidade. Os portugueses adoram o homem providencial (sim, habitualmente é apenas aos homens que recai o banho de louvor), o símbolo, o herói, o messias. Adoram as almas intocáveis, santificadas. Adoram, portanto, quem não pode existir. Tanto acompanhando programas de debate, como interagindo com as mais diversas pessoas no quotidiano, detecta-se, por exemplo, uma adoração colectiva nacional pelo Presidente da República, com a elevação de escudos intelectuais e populares à sua volta que quase parecem converter em heresia qualquer crítica legítima e saudável à sua actuação. Reconheçamos, felizmente, que longe estamos de ultrapassar a patologia da cega paixão de metade da América por Trump, alguém que assedia e objectifica mulheres de forma repulsiva e sistemática, alguém que ridiculariza pessoas com deficiência, que mente compulsivamente e que caracteriza a sua acção por uma total amálgama de narcisismo e absoluta incompetência, alguém que transpira e faz transpirar o pior de nós.
Mas sim, os portugueses adoram ter os seus santos de altar. Ronaldo é extraordinariamente representativo desse cisma. Cristiano Ronaldo é, e há uma serena objectividade em dizê-lo, um homem extremamente profissional, um exímio desportista, pautado por qualidades de trabalho, superação, rigor, disciplina e cooperação de distinção. Acima disso, contudo, Ronaldo é, também, homem. Reconhecer a sua excepcionalidade no panorama nacional e internacional, ou o que simboliza para Portugal, ou até a visibilidade que nos conferiu, não implica ignorar ou escamotear o que de menos positivo ou efectivamente negativo possa ter consigo. Valorizar uma excelente pessoa, em qualquer dimensão da sua vida ou personalidade, não implica extinguir os seus defeitos. Como em todos nós, há o bom e há o mau. Sendo humano, é-se passível de se ser criticado.
Ao se levantarem suspeitas sobre a conduta de Cristiano com a alegada vítima, veio a cavalaria nacional, galopando nos seus exércitos digitais, defender o herói nacional, veio o “deste-nos tanto, agora estamos contigo”, veio a defesa incondicional. E isso não é tolerável. Veio a defesa de quem nem se preocupou em conhecer a história, de quem não compreendeu que tudo isto partiu de uma investigação jornalística aturada, trabalhada e documentada. Veio aquela defesa apaixonada e cega de quem ama e não quer ver. E a dimensão desta denúncia pede-nos, no mínimo, que a saibamos olhar com clareza, que saibamos reflectir sobre ela e que saibamos aguardar para se compreender os contornos e factos à espera de se revelar.
No entanto, se há componente desta história que é realmente perturbadora é o que espelhou do machismo profundamente incrustado nos portugueses. Não que isto seja uma particular novidade. Porém, a reacção instintiva por parte de tantas mulheres, algo especialmente sinistro, e a forma como defenderam Cristiano Ronaldo, ao sugerir que a rapariga teve aquilo que merecia, é incompreensível. Os comentários que se lêem e ouvem desta história vão desde “o que é que ela estava à espera?”, passando por “oh, oh, então ela foi para o quarto, queria o quê?”, até ao abismal “quem vai à guerra, vai para a guerra”. Emana esta ideia incrivelmente desconcertante e, francamente, nojenta de que uma mulher que seduz um homem ou aceita ir com ele para um quarto terá que estar disponível para aceitar tudo o que lá acontecer. Não, não é assim. Não é assim com Ronaldo e não é assim com ninguém.
Duas pessoas podem seduzir-se mutuamente e iniciar um qualquer contacto sexual, mas, se em algum momento, qualquer uma das partes não se sentir confortável e desejar parar, e assim o transmitir, é para parar. Não é não. E acabou. Nem consigo depositar nas palavras que aqui deixo o quão perturbador é para mim ver uma mulher a julgar natural alguém poder ser abusado por ter seduzido outra pessoa, ou por ter aceitado um convite para subir a uma suite. Seduzir um homem não é passar-lhe um cheque em branco. E não, os homens não têm necessidades nem sofrem de impulsos incontroláveis. Têm sim desejos e são imputáveis e responsáveis pelas suas acções. Forçar uma mulher a ter sexo contra a sua vontade é violação. Forçar a namorada ou a esposa a ter sexo é violação. Forçar uma prostituta a ter sexo é uma violação. Ponto final.
Não sei se Ronaldo fez o que se alega. Sei que pode ter feito e sei que deve ser julgado inocente ou culpado com base nos factos. Sei que as suas incríveis qualidades não ilibam, por princípio, quaisquer eventuais crimes e sei que o respeito e carinho que possamos ter por ele não nos pode impedir de avaliar a realidade.
E a estas mulheres, não sei o que vos diga. Sei que tenho pena. Dizer que há machismo entre os homens é tautológico. Ver que as mulheres sofrem do mesmo mal é só de uma profundíssima tristeza. Ver mulheres que, em tantos casos de assédio, insurgem a sua voz de condenação e, chegando a um caso mais pessoal, quase de patriotismo visceral, tudo vacila, tudo cede, desabrochando as suas inculcadas visões sobre sexualidade, feminismo e igualdade... é tudo muito triste. Só me apetece furtar Stieg Larsson e escrever o livro As mulheres que odeiam as mulheres.