O que resta da privacidade se o fisco souber onde uma pessoa se depila?
Projecto das facturas sem papel abre ainda mais o leque de informação no fisco. Comissão de Protecção de Dados deixa reparos. Governo avalia.
O Governo quer lançar um projecto chamado “Factura sem papel”, deixando de ser obrigatório imprimir o comprovativo – basta que a empresa e o consumidor aceitem aderir à factura digital. A ideia é simplificar, é voluntária para as empresas e os consumidores. Mas implica que o fisco passe a conhecer na íntegra o que está na factura, o que hoje não acontece na informação que chega à autoridade tributária.
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O Governo quer lançar um projecto chamado “Factura sem papel”, deixando de ser obrigatório imprimir o comprovativo – basta que a empresa e o consumidor aceitem aderir à factura digital. A ideia é simplificar, é voluntária para as empresas e os consumidores. Mas implica que o fisco passe a conhecer na íntegra o que está na factura, o que hoje não acontece na informação que chega à autoridade tributária.
Na prática, se a medida avançar como o Governo a pensou até agora, a administração fiscal fica a saber, por exemplo, se uma pessoa consumiu um café ou um sumo num restaurante, ou quais foram os medicamentos comprados na farmácia.
Ainda não é certo que a medida vai ficar tal como está num primeiro projecto do Governo. A Comissão Nacional de Protecção de Dados (CNPD) apresentou sérias reservas a um dos pormenores do diploma e o executivo irá “analisar as recomendações”, confirmou ao PÚBLICO o gabinete de imprensa do ministro Mário Centeno.
O que restará da privacidade dos cidadãos se a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) passar a conhecer os bens ou serviços exactos comprados todos os dias por cada pessoa? Não é com uma dúvida, mas já com uma resposta, que a CNPD aborda o assunto: no parecer à proposta do Governo, emitido na última terça-feira, não tem dúvidas de que haverá um “retrocesso” nos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos. E dá vários exemplos para ilustrar isso mesmo, chegando ao ponto de dizer que o fisco poderia saber se uma pessoa que foi a um centro de estética recebeu uma massagem ou fez a depilação. Mais: poderia ficar a saber “sobre que parte do corpo incidiu” a depilação.
O contribuinte tem de dar o seu consentimento, mas mesmo assim, diz a entidade liderada por Filipa Calvão, a medida “vai para além do necessário em relação às finalidades visadas com este tipo de tratamento” de informação.
Por isso vê “repercussões significativas na protecção dos dados pessoais e da privacidade”. A questão coloca-se nas situações em que as pessoas “de algum modo” estão identificadas nas facturas, e não apenas quando uma pessoa pede o número de identificação fiscal (NIF).
O Governo quer lançar um novo mecanismo que permite aos contribuintes utilizarem um código (o QR Code) para usufruírem do benefício fiscal de IRS sem ser necessário indicar o NIF na factura (mas ao usarem o código, a operação está a ser comunicada ao fisco, apesar de a loja não conhecer o número do contribuinte).
Mesmo sem estar associado o NIF à factura, isso “não garante que a AT não conheça o conteúdo integral da factura”. Também neste caso o fisco pode ficar a conhecer os bens e serviços “concretamente adquirido por cada cidadão (apesar de aí não constar o NIF)”.
As alternativas
Com o E-Factura, a máquina fiscal passou a receber uma enorme quantidade de dados sobre as vendas das empresas – e as correspondentes compras de cada pessoa –, mas não conhece a “discriminação dos bens ou serviços”. É a diferença para o que é agora proposto.
No diploma, o Governo sustenta que as alterações (como acontece com o QR Code) garantem que um contribuinte faça uma compra anonimamente (em relação ao dono da loja), mas a CNPD, embora diga que se essa finalidade é de “louvar”, deixa as “maiores reservas” em relação à forma como a lei está desenhada.
Para a CNDP, há uma forma de assegurar que a “integridade da factura” digital existe à mesma sem se expor a vida privada.
Há três alternativas, segundo a CNPD. Basta que os sistemas de informação de um vendedor “garantam a reprodução da factura sem a especificação dos bens ou serviços adquiridos, sobre a qual seja aponível a assinatura electrónica avançada”; ou que haja outra mecanismo que garante que a informação dos bens não apareça; ou que “se preveja que a AT mantenha a solução tecnológica até aqui existente que permite descartar essa informação antes da mesma entrar no respectivo sistema de informação”.