Madeira dá 1,5 milhões em benefícios a empresas da filha do ditador Obiang
Francisca Nguema Jiménez, filha do Presidente da Guiné Equatorial, tem duas empresas na Zona Franca da Madeira. Gerente está ligado a mais 19 sociedades, 15 das quais com a mesma morada no Funchal.
Quem percorrer a Calle Argelia, na capital da Guiné Equatorial, para ir ao Café Del Mar estará longe de imaginar o que liga o n.º 15 dessa rua de Malabo ao primeiro andar do n.º 20 da Rua Dr. Brito Câmara, no Funchal.
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Quem percorrer a Calle Argelia, na capital da Guiné Equatorial, para ir ao Café Del Mar estará longe de imaginar o que liga o n.º 15 dessa rua de Malabo ao primeiro andar do n.º 20 da Rua Dr. Brito Câmara, no Funchal.
O que une estes dois pontos do Atlântico é Francisca Nguema Jiménez, filha do Presidente da Guiné Equatorial, Teodoro Obiang Nguema Mbasogo, no poder desde 1979. A empresária é presidente da agência equato-guineense que supervisiona as obras públicas e escolheu a Zona Franca da Madeira (ZFM) para abrir duas empresas: a sociedade Coralco (em 2013) e a Masela, um “espelho” da primeira (em 2018).
Ao longo dos últimos quatro meses, o PÚBLICO não conseguiu verificar o que fazem as duas empresas na Madeira para além das actividades indicadas no registo comercial e das contas apresentadas ao fisco. Nenhuma tem site e o escritório que representará Francisca Nguema Jiménez em Espanha, L&S Abogados, não respondeu a nenhuma pergunta.
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Abrir negócios na ZFM já permitiu à filha do ditador beneficiar de incentivos fiscais de pelo menos 1,5 milhões de euros, à boleia de um IRC de 5%. A Coralco e a Masela estão sediadas no primeiro andar do n.º 20 da Rua Dr. Brito Câmara, no centro da capital madeirense, a exacta morada de muitas outras empresas. O gerente das duas sociedades da empresária equato-guineense é o mesmo: Francisco José de Gouveia, ligado a mais 19 empresas (como gerente, representante ou administrador), 15 das quais com sede naquele mesmo primeiro andar. Gouveia também não respondeu.
O regime fiscal da ZFM não é igual a offshores como o Panamá ou as Ilhas Caimão. Na Madeira, sabe-se quem são as empresas e os donos. Observadores internacionais alertam no entanto para as relações privilegiadas da ZFM com praças financeiras pouca ou nada transparentes. A Comissão Europeia está desde Julho a fazer uma “investigação aprofundada” às isenções fiscais atribuídas pela ZFM durante o “regime III” (que terminou em Dezembro de 2014). Foi nesse período que a Coralco foi criada e beneficiou do primeiro benefício fiscal. Uma das linhas de investigação europeia é saber se os lucros das empresas da ZFM foram obtidos com actividades realizadas na região ultraperiférica e se as empresas geraram e mantiveram os postos de trabalho na Madeira, como previsto quando Bruxelas autorizou o “regime III”.
Nos últimos anos, as regras europeias contra o branqueamento de capitais têm colocado pressão sobre os governos para aumentar o controlo das Pessoas Politicamente Expostas (PPE) com “medidas reforçadas de identificação e diligência”. Isso aplica-se tanto aos chefes de Estado, primeiros-ministros, generais, juízes ou embaixadores, como aos seus familiares.
Ser filha de um Presidente da República torna Francisca Nguema Jiménez automaticamente uma PPE. Ser filha de um Presidente que lidera uma ditadura opaca, marcada pela prisão de opositores políticos e associada a processos judiciais por lavagem de dinheiro, faz da empresária uma PPE sobre quem as regras tornam o escrutínio ainda mais natural.
A 1 de Outubro, a eurodeputada socialista Ana Gomes escreveu uma carta à Comissão Europeia e à Autoridade Bancária Europeia a alertar para a presença da Coralco na Madeira. A Bruxelas fez chegar documentos que, afirma, “poderão ilustrar o branqueamento de capitais e os esquemas de evasão fiscal usados por esta PPE de uma cleptocracia”. Em cartas anteriores, Gomes alertou para outros problemas no país, como a violação de direitos humanos e a perseguição de opositores políticos.
Mudança de nomes
Francisca Nguema Jiménez tem 43 anos e nasceu em Malabo quando o pai era tenente-coronel e ainda não tomara o poder ao tio através de um golpe de Estado. O ditador anterior, Francisco Macías Nguema, foi executado em 1979 na Prisão da Praia Negra, de que o próprio Obiang fora director.
A mãe de Francisca Nguema Jiménez é espanhola — chamar-se-á Josefa ou Trinidad Jiménez Makendengue — e não é primeira-dama oficial (há a primeira e a segunda). Mas isso não a afastou do regime.
Francisca Nguema Jiménez ou Francisca Obiang Jiménez ou Francisca Obiang ou “Paquita”, como é conhecida na Guiné Equatorial, formou-se em Gestão de Obra nos Estados Unidos e, ao regressar ao país, foi trabalhar para a agência GE-Proyetos, que gere as obras públicas. Mais tarde, o pai nomeou-a presidente. É uma mulher com poder real, mas não um rosto da linha da frente do regime.
Como muitos dos seus meios-irmãos e familiares do Presidente Obiang, tem um lugar-chave na administração pública. Esta semana, o Presidente terá promovido a general o seu filho Teodoro Nguema Obiang Mangue, vice-Presidente desde 2016. Como noutros momentos, especula-se nos meios diplomáticos e empresariais se a festa dos 50 anos da independência do país, esta sexta-feira, será o palco escolhido para anunciar o sucessor.
Advogados, polícias e diplomatas confirmam que não só é comum as figuras públicas na Guiné Equatorial mudarem de nome, como é frequente as Pessoas Politicamente Expostas omitirem os apelidos famosos quando abrem empresas fora dos seus países.
Na Guiné Equatorial, a empresária usa Francisca Obiang Jiménez como nome oficial, mas ao obter a nacionalidade espanhola fixou como nome completo Francisca Nguema Jiménez. É com esta designação que surge como accionista das duas empresas na Madeira, confirmou o PÚBLICO na Certidão de Registo Comercial da Coralco e da Masela.
Mini-cascata
Ao omitir a palavra Obiang, a empresária dificulta a sua identificação. Mas sabendo que a dona das duas empresas nasceu em Malabo a 25 de Março de 1975, bastou ao PÚBLICO cruzar dados — nome, nacionalidade, data de nascimento, morada e curso superior — para confirmar que a Francisca Obiang Jiménez que é a líder da GE-Proyetos é a mesma que assina como Nguema Jiménez na ZFM.
A líder da GE-Proyetos tem site oficial e conta no Linkedin: aí diz que concluiu o curso de Gestão de Obra na Eastern Michigan University em 2001. Nos serviços da universidade não há registo de ali ter estudado uma Obiang, mas sim de uma aluna Francisca Nguema, graduada em Dezembro de 2001 em Gestão de Obra e nascida a 25 de Março de 1975, confirmou ao PÚBLICO o gabinete de imprensa da Eastern Michigan University. Neste caso, a aluna deu Espanha como morada. No registo público no Boletim Oficial do Estado espanhol há uma Francisca Nguema Jiménez, da Guiné Equatorial, que obtivera a nacionalidade espanhola no ano anterior.
Dez anos depois, quando abriu a Coralco em Portugal, Francisca Obiang tinha a representá-la a New Madeira – Investment Serviços, uma empresa de consultoria fiscal e legal que hoje se chama Newco Corporate Services e que, além do Funchal, tem escritórios em Lisboa, Madrid e Valletta, capital de Malta, uma praça financeira que tem estado sob os holofotes internacionais por causa dos negócios que envolvem PPE.
A sede da Newco no Funchal é também no primeiro andar do n.º 20 da Rua Dr. Brito Câmara. A Coralco é detida a 100% pela empresária; a Masela é um espelho da primeira: 50% do capital é detido directamente por Francisca Obiang e 50% pela Coralco.
O Buddha Nights
Quando criou a Coralco, Francisca Obiang deu como morada na Guiné Equatorial a Calle Argelia, n.º 15, em Malabo. Essa é a morada onde durante anos funcionou um célebre bar da noite de Malabo, o Buddha Nights, que cinco fontes afirmam ao PÚBLICO ser conhecido como o bar de “Paquita” Obiang. O Buddha Nights já não existe. O local teve obras e, no mesmo lugar, funciona agora a entrada do Café Del Mar. Aí, há três números de polícia: “O n.º 62, o n.º 40 e, debaixo do 62, encrustado na parede, está o n.º 15”, descreveu ao PÚBLICO um residente de Malabo que foi ao local.
No registo oficial da empresa, a Coralco indica dez áreas de actividade no seu “objecto social”, entre as quais prestação de serviços contabilísticos, económicos, informáticos, de engenharia civil e arquitectura; promoção de imóveis turísticos e hoteleiros; consultoria na criação de empresas internacionais; importação e exportação de alimentos e têxteis; comissões e consignações; marketing; transferência de patentes, e participação no capital de outras empresas. O que faz na Madeira é no entanto um mistério. A 5 de Outubro, o PÚBLICO contactou por escrito Francisca Obiang através da L&S Abogados, tanto no escritório de Valência como no de Malabo, mas não obteve resposta.
Quando a Coralco foi criada a 10 de Outubro de 2013, foi André Gouveia e Silva, advogado da Abreu Advogados (também “partner” da Newco) quem reconheceu a assinatura de Frederico Gouveia e Silva (também da Newco) na qualidade de procurador de Francisca Obiang. Também a Abreu Advogados não respondeu às perguntas do PÚBLICO.
A Masela vai apresentar as primeiras contas no próximo ano. Sobre a Coralco já se conhecem números. Como na ZFM tem uma taxa de IRC de 5%, a empresa pagou 459,8 mil euros de imposto em 2014 e 2015. O benefício fiscal desses dois anos foi de 1,5 milhões de euros. Se a Coralco tivesse sede em Lisboa ou em qualquer outra cidade do continente ou dos Açores, teria pago de IRC 1,9 milhões de euros, uma vez que a taxa era de 23% em 2014 e 21% em 2015.
Uma análise às contas permite verificar que a Coralco pagou 89,8 mil euros de IRC em 2014 e 370 mil euros em 2015. No primeiro ano, a isenção fiscal foi de 322,9 mil euros e no segundo foi de 1,18 milhões. Nesses anos, os proveitos com a prestação de serviços foram sobretudo fora da União Europeia.
Em 2016, a Coralco já não aparece nas listas da autoridade tributária como empresa que recebeu benefícios fiscais. E em 2017 apresentou zero euros em vendas e serviços.
Madeira invoca sigilo
Questionado, o vice-presidente do Governo Regional da Madeira, Pedro Calado, que tem a pasta dos assuntos fiscais, não explicou o processo que levou à autorização das empresas da filha de Obiang, nem as razões para o parecer favorável emitido pelos serviços em 2013.
Numa resposta de duas páginas A4 enviada ao PÚBLICO, o executivo regional descreve o que acontece quando há inspecções às empresas e lembra que a lei prevê recusar uma licença por motivos de “idoneidade” ou “parecer desfavorável” (o que não aconteceu a Francisca Obiang — o então secretário regional do Plano e Finanças emitiu um despacho a autorizar a Coralco “nos termos do parecer do gabinete jurídico e da Zona Franca”).
Em relação ao controlo da lavagem de dinheiro, o Governo madeirense diz que as informações obtidas nas inspecções tributárias podem ser enviadas “pelo Ministério Público – Departamento Central de Investigação e Acção Penal à Autoridade Tributária” (mas não diz se as empresas suscitaram dúvidas). E invocou o “dever de confidencialidade” e o sigilo dos contribuintes para não “divulgar quaisquer informações ou tecer quaisquer considerações ou comentários sobre quaisquer empresas”.
O Ministério dos Negócios Estrangeiros limitou-se a dizer, através da assessora de imprensa do ministro, que “não tem conhecimento de empresas equato-guineenses a operar ou com investimentos em Portugal”.