A conversa de café de Raquel Varela e Teresa Rita Lopes
Capitalismo, patriarcado e homofobia fazem parte da mesma constelação, ainda que atuem em terrenos relativamente autónomos embora complementares.
A autoentrevista ou diálogo encenado de Raquel Varela e Teresa Rita Lopes é um excelente exemplo de como o reacionarismo cultural coloniza as mentes mais progressistas. Desde logo, quando Teresa Rita Lopes classifica de “desenfreado” (logo, a precisarem de ser domados) os atuais movimentos feministas. Ou ainda quando Raquel Varela se indigna com o facto de as mulheres grevistas em Espanha terem escolhido como seu símbolo uma vagina e não uma mão pacificadora unindo-as aos homens.
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A autoentrevista ou diálogo encenado de Raquel Varela e Teresa Rita Lopes é um excelente exemplo de como o reacionarismo cultural coloniza as mentes mais progressistas. Desde logo, quando Teresa Rita Lopes classifica de “desenfreado” (logo, a precisarem de ser domados) os atuais movimentos feministas. Ou ainda quando Raquel Varela se indigna com o facto de as mulheres grevistas em Espanha terem escolhido como seu símbolo uma vagina e não uma mão pacificadora unindo-as aos homens.
É impressionante como uma e outra, tão preocupadas com a efervescência e a radicalidade destes movimentos, estão prestes a esquecer um dos eixos estruturantes e mais pesados das relações sociais no nosso tempo: a dominação masculina; dominação tão mais insidiosa que consegue ser reconhecida e legitimada como natural e universal. Pois se as mulheres – as próprias mulheres e não os seus porta-vozes - escolhem como seu símbolo de empoderamento uma vagina, as escritoras ofendidas indignam-se com a ousadia das novas feministas, dão-lhes um ralhete, pois que feminismo libertador só houve um, o de 68, que nostalgia.
Não precisariam também, por coerência argumentativa, criticar as cabeleiras ou os punhos erguidos do Black Power, ou será que esses negros desenfreados também deveriam dar a mãozinha conciliadora aos supremacistas brancos? Que ousadia, ainda, terem-se revoltado contra Bolsonaro, o tipo que defende a violação e todas as afrontas, deveriam ter ficado em casa a coser meias ou a unir-se aos homens?
A luta faz-se de símbolos e quem está nela escolhe os seus. Equívoco maior quando abraçam a mais indolente das razões, a exclusivista: esquece-se a luta de classes, dizem-se, em favor de uma “luta entre os sexos”. Nem falarei aqui da lamentável confusão entre sexo e género, pois é deste que se trata e não daquele, antes insistirei na preguiça das autoras em separar e hierarquizar as lutas e as dominações, essa autoridade autoritária que quer definir o que é a opressão, substituindo-se às experiências das mulheres um qualquer dogma tosco e mal trabalhado. As dominações – e por isso as lutas – cruzam-se, porque assim é na vida. Capitalismo, patriarcado e homofobia fazem parte da mesma constelação, ainda que atuem em terrenos relativamente autónomos embora complementares.
A Serra de Sintra a arder, os paióis do exército roubados, Bolsonaro no Brasil e estas fêmeas, as novas feministas, desenfreadas a darem nas vistas contra a violação! É preciso topete, dizem as duas amigas na conversa de café. Mas o paroxismo estava reservado a Raquel Varela e ao seu azedume a Kathryn Mayorga, a pura ideologizada, vanguardista e revolucionária contra a puta.
Mas depois percebi do que se tratava: as intelectuais iluministas querem educar o povo recalcitrante que não pensa e não lê Camões. E Raquel Varela, emocionada, quer reinventar o amor. Está tudo dito, passou-se o dia e bebeu-se o café. A serra de Sintra a arder, os paióis rebentados, as intelectuais a bater nas feministas. Tudo no seu lugar.