O espaço do Liberalismo em Portugal
O Liberalismo, clássico ou social, tem respostas para os problemas com que nos defrontamos.
Os liberais têm vida difícil em Portugal. Um pouco por todo o lado, à esquerda e à direita, vemos os termos “neoliberal” (uma expressão que o uso vem esvaziando de conteúdo) e “ultraliberal” utilizados como insultos (por vezes conjugados, de forma paradoxal, com “fascista”). À direita, muitos conservadores e populistas decidiram que, apesar de tudo, é melhor para a sua imagem autoproclamarem-se liberais, enquanto defendem tenazmente o iliberalismo de Donald Trump, Jair Bolsonaro ou Viktor Orbán. As ideias liberais sofrem de muita mistificação e descaracterização, num país em que os valores liberais são tradicionalmente pouco acarinhados.
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Os liberais têm vida difícil em Portugal. Um pouco por todo o lado, à esquerda e à direita, vemos os termos “neoliberal” (uma expressão que o uso vem esvaziando de conteúdo) e “ultraliberal” utilizados como insultos (por vezes conjugados, de forma paradoxal, com “fascista”). À direita, muitos conservadores e populistas decidiram que, apesar de tudo, é melhor para a sua imagem autoproclamarem-se liberais, enquanto defendem tenazmente o iliberalismo de Donald Trump, Jair Bolsonaro ou Viktor Orbán. As ideias liberais sofrem de muita mistificação e descaracterização, num país em que os valores liberais são tradicionalmente pouco acarinhados.
Ainda assim, existem liberais em Portugal. E não estão quietos ou calados. Fazem comentários nos meios de comunicação social e na blogosfera. Estão espalhados por associações cívicas e por partidos políticos, incluindo alguns que se assumem como partidos liberais. No dia 23 de setembro, perante esta situação, um artigo neste jornal perguntou para que servem os liberais. Uma pergunta curiosa, mas que merece resposta.
O Liberalismo promoveu, e promove, a liberdade individual (civil, política e económica), acompanhada da respetiva responsabilidade, a igualdade perante a lei e a proibição do arbítrio estatal, o Estado de Direito, a separação e interdependência de poderes, a economia de mercado e a concorrência, o secularismo, o pluralismo e o cosmopolitismo, o comércio livre e as relações entre Estados assentes na cooperação e no Direito. Os liberais (sociais) participaram ativamente na construção do Estado Social, da economia social de mercado e do Estado Regulador.
O Liberalismo promove e protege o direito à diferença e, desta forma, uma sociedade aberta e dinâmica. A democracia liberal procura um equilíbrio adequado entre a liberdade individual e a soberania popular, impondo limites aos poderes e capacidade da maioria de impor a sua vontade a eventuais minorias. O sufrágio é universal, e é reconhecida e protegida a liberdade de consciência, a liberdade de expressão, a liberdade de associação e, assim, a liberdade de intervenção cívica e política. O Liberalismo defende o princípio da subsidiariedade e a descentralização, promovendo-se que o poder seja exercido o mais próximo possível dos cidadãos.
O Liberalismo ataca comportamentos rentistas, ligações perigosas entre negócios e Estado, e quaisquer barreiras injustificadas à entrada no mercado. As empresas devem depender dos consumidores para o seu sucesso, não de subsídios, e os consumidores devem ser protegidos contra comportamentos fraudulentos da parte das empresas. O Estado não deve participar ativamente no mercado, assumindo, quanto muito, um papel regulador (através dos tribunais ou de entidades reguladoras independentes). Os direitos de propriedade devem ser adequadamente protegidos, mormente através de um sistema judicial eficiente. Assim se promove a criação de riqueza e a paulatina melhoria das condições de vida.
Na sua vertente mais social, o Liberalismo promove a utilização de mecanismos de mercado e de responsabilidade individual para promover uma rede de segurança social eficiente, que combata a pobreza e não a criação de riqueza. O acesso ao ensino e a cuidados de saúde deve ser assegurado para todos, independentemente da respetiva condição socioeconómica, mas não compete ao Estado, necessariamente, a prestação do serviço, ou a propriedade dos edifícios. Contrariamente ao que por vezes parece presumido no debate mediático português, existem diversas formas de modelar um Estado Social, e nem todas passam pelo dirigismo centralizado e burocrático que demasiadas vezes caracteriza o Estado Social português.
Do Liberalismo podemos esperar a promoção de um sistema judicial isento, justo e célere. São ideias liberais a presunção de inocência, a tipificação legal dos crimes (que tem de ter uma justificação adequada, dado que, em princípio, impera a liberdade individual), a não retroatividade da lei penal mais desfavorável, a aplicação imediata da lei penal mais favorável, o fim da tortura e das penas desumanas (incluindo a pena de morte), a independência dos juízes e dos tribunais, a promoção da reabilitação dos criminosos (combatendo-se desta forma o recidivismo) e a ideia de que a pena a aplicar, e aplicada, deve ser dissuasora da adoção do comportamento no futuro (para o próprio e para terceiros) e proporcional ao crime cometido.
O Estado deve ter as contas públicas em ordem, não onerando as gerações futuras com dívidas públicas exorbitantes, promovendo desta forma a justiça entre gerações. Os liberais discutem entre si, e com pessoas que perfilham outras ideologias, quais os impostos a cobrar, e o nível de impostos adequado. Nesta discussão surgem ideias como taxa fixa para o imposto sobre o rendimento das pessoas individuais, o fim do imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas, a fixação de impostos sobre externalidades e sobre o consumo, a existência de um imposto sobre as sucessões e de um imposto sobre o valor dos terrenos. Tudo contributos relevantes para uma discussão profunda sobre para que servem os impostos e para uma eventual reforma do sistema fiscal.
Na área da Defesa e das Relações Internacionais, os liberais conseguiram ilegalizar a guerra, apenas sendo permitida em situação de legítima defesa e após permissão do Conselho de Segurança da ONU, e o número de guerras vem diminuindo drasticamente. A prosperidade ocidental (e mesmo global) em muito deve ao dividendo da paz promovido pela implementação de políticas liberais a nível global. Vem sendo construída uma ordem global cada vez mais assente na cooperação e no Direito (vejam-se o Tribunal Internacional de Justiça e o Tribunal Penal Internacional). A promoção do comércio livre através do Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio e, hoje em dia, da Organização Mundial do Comércio, tem servido para salvar da pobreza milhões e milhões de pessoas em todo o mundo. Num contexto de transição, os liberais têm contributos importantes a dar na reforma das instituições globais, de forma a promover uma maior inclusividade, sem serem perdidos os princípios e valores que promoveram a prosperidade global.
Muito se poderia ainda dizer sobre soluções liberais relativas à defesa do meio ambiente (como impostos sobre o carbono ou sistemas cap and trade), ou relativas a políticas de migração (políticas de acolhimento e integração de imigrantes, que permitam a sua participação efetiva na comunidade), ou as divergências liberais relativamente a políticas como os impostos negativos ou o rendimento básico incondicional. O Liberalismo, clássico ou social, tem respostas para os problemas com que nos defrontamos. E as suas ideias basilares (liberdade de consciência, de expressão e de associação) criam as condições necessárias para podermos debater soluções para esses mesmos problemas, sem estar fadados a seguir um determinado pensamento único.
Os liberais portugueses são herdeiros e tributários deste conjunto de ideias e políticas que promoveram níveis de progresso extraordinários, e ajudaram a revolucionar o mundo nos últimos 250 anos (o livro Enlightenment Now, de Steven Pinker, é bastante esclarecedor a este respeito, embora o autor se debruce genericamente sobre os valores do Iluminismo). Somos hoje bem mais livres, e temos hoje bem melhores condições de vida do que no passado, por causa da implementação prática de ideias liberais. E não acaba por aqui.
O Liberalismo não tem apenas um passado e um presente. Tem também um futuro. Para celebrar o seu 175.º aniversário, a revista The Economist publicou um manifesto pela renovação do Liberalismo para o séc. XXI, em que apela aos liberais para se imbuírem do espírito reformista e emancipador que os caracteriza, para resolver os problemas com que nos defrontamos e confrontar a ascensão dos nacionalismos populistas exacerbados, que colocariam em causa os ganhos dos últimos dois séculos e meio.
Os liberais (nos quais me incluo) devem ouvir este apelo. Em Portugal, devem assumir-se como liberais, ignorar os insultos, desmistificar o Liberalismo, e bater-se pelos valores em que acreditam. As políticas liberais podem fazer a diferença. E quando está em causa a defesa da liberdade de cada um viver a sua vida como quiser, sem prejudicar indevidamente os outros, essa diferença não é pouca.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico
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